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do Ven. Thich Nhat Hanh
A Segunda Nobre Verdade: o caminho ignóbil (parte 2)
Uma vez que passamos a chamar o nosso sofrimento pelo seu nome verdadeiro, precisamos olhar profundamente para ver de onde este sofrimento vem. Se aceitarmos a primeira verdade do sofrimento, temos que aceitar que existem causas para esse sofrimento, porque tudo tem as suas raízes. Quando olhamos profundamente as raízes e as examinamos, já começamos a transformar o nosso sofrimento. Como o mal-estar surgiu? Nós não precisamos encontrar a resposta acreditando que Buda ou Deus criaram o sofrimento por razões misteriosas. Nós só precisamos usar nossas mentes e corações calmos para olharmos profundamente e vermos as causas. Existem formas de perceber e modos de vida que levam ao mal-estar. Esta é a Segunda Nobre Verdade: as causas do sofrimento.
A Segunda Nobre Verdade pode ser concebida como um caminho. Mas não é um caminho que leva à felicidade e ao bem-estar. É um caminho que leva ao sofrimento. Muitos de nós têm tomado o caminho que leva à raiva, discriminação, violência, ignorância e desespero. O caminho do sofrimento é o caminho ignóbil da visão errada, pensamento errado, fala errada, ações erradas, modo de vida errado, diligência errada, plena atenção errada e concentração errada. Se entendermos como e por que estamos trilhando o caminho do sofrimento, então podemos ver o seu oposto. O Nobre Caminho Óctuplo, o caminho para o bem-estar, se revelará. (...)
O que nós consumimos é a causa de muito do nosso sofrimento. O Buda falou de quatro tipos de alimentos, que podem nos trazer tanto o bem-estar ou mal-estar. Felicidade e sofrimento podem ser entendidos em termos de alimentos, os nutrientes que consumimos todos os dias.
O Buda disse: "Se você olhar profundamente para a natureza do que surgiu, ou seja, o seu mal-estar, a sua depressão e identificar a fonte dos nutrientes que criaram isso, você já está no caminho da transformação e cura ". (...)
O segundo tipo de comida são as impressões sensoriais. Esse tipo de alimento não é consumido com a boca, mas com os nossos olhos, ouvidos, narizes, corpos e mentes. Dependendo do conteúdo, consumir televisão, livros, filmes, internet, e conversas podem ser saudáveis ou tóxicos. Às vezes, estamos sofrendo por outras razões, e tentamos escapar do nosso sofrimento, com mais consumo, o que traz mais sofrimento. Estamos chateados, assistimos a um programa de televisão, e depois, dependendo do conteúdo, nos sentimos ainda mais chateados.
Consumo sensorial inclui também o que ouvimos dos outros. Se dermos ouvidos a fofocas, julgamentos e insultos, então estamos consumindo essas coisas. Se o que nós consumimos nos enche de irritação, raiva ou desejo, então cria mais irritação, violência e sofrimento no mundo. Nós podemos ter uma estratégia de consumo consciente, para que o que lemos, vemos e ouvimos não cause mais sofrimento para nós e para os outros.
Para ilustrar como o consumo incorreto das impressões sensoriais pode levar ao sofrimento, Buda utilizou uma imagem muito drástica de uma vaca sem praticamente nenhuma pele como resultado de uma doença, de modo que podia ser facilmente atacada por muitos tipos de microrganismos. Quando a vaca se deitava, os microorganismos do solo subiam e fixavam-se na vaca chupando seu sangue. Quando a vaca era levada para perto de uma árvore ou parede antiga, os microorganismos na casca da árvore ou no muro saiam e sugavam o sangue das vacas. A vaca não tinha meios para se proteger, porque sua pele era muito fina.
Na vida moderna, estamos expostos a propagandas, violência, programas atraentes e as imagens que tentam incitar o nosso desejo 24 horas por dia. Quando não estamos conscientes, não temos uma pele para nos proteger, o que vemos e ouvimos penetra e nos toma de assalto. Sem atenção, não temos meios para nos proteger e sofremos.
Quando nós dirigimos pela cidade, estamos consumindo queiramos ou não. Anúncios penetram em nossa consciência e na consciência das nossas crianças, que são menos capazes de filtrar essas fontes de consumo tóxico.
Lembro-me de um dia, um garotinho veio a Plum Village, o centro de retiro onde eu moro, e ele queria ir embora imediatamente porque não havia televisão. Ele acreditava que não era possível para ele sobreviver sem televisão. Olhou para o calendário: meditação sentada, café da manhã consciente e meditação andando e disse: Isto é como um acampamento militar.
Uma das monjas lhe disse: Ok, nós te levaremos para a estação de trem para você voltar para sua casa. Mas você tem que esperar algumas horas, pois o próximo trem não sairá antes das sete da noite. Enquanto isso, um grupo de jovens veio e convidou-o para brincar com eles. Quando chegou a hora de ir para a estação ferroviária ele disse, "Bem, eu posso ficar mais um dia."
E, ao final, ele ficou por duas semanas. Quando chegou a hora de ele ir para casa, ele disse à sua mãe: "Por que temos que ir?" Ele descobriu que podia sobreviver muito bem sem a televisão e descobriu que havia outras coisas que poderiam alimentá-lo muito melhor. Podemos sentir que não podemos viver sem consumir certas impressões sensoriais mas se tentarmos, se tivermos o espaço, a oportunidade e o ambiente favoráveis para consumir nutrientes saudáveis, o nosso sofrimento diminuirá.
O terceiro tipo de alimento é volição, também chamado de aspiração ou desejo. Cada um de nós tem um desejo interior profundo, e esse desejo é um alimento. Se não tivermos nenhum desejo, não iríamos ter cuidado com a nossa vida. Nós não teríamos nenhuma energia. Todo mundo tem um desejo verdadeiro e profundo. O desejo pode ser saudável ou tóxico e pode causar bem-estar ou sofrimento.
Quando Siddhartha deixou o palácio para se tornar um monge, tinha o desejo de praticar e se iluminar a fim de ajudar as pessoas a sofrer menos. Este é um desejo saudável, uma boa nutrição pois este alimento deu-lhe uma grande quantidade de energia para superar as dificuldades e ter sucesso em sua aspiração. Mas há outros tipos de desejos, como o desejo de matar ou de punir, que são tóxicos.
A compaixão é uma energia positiva. Se você é um trabalhador da área social, pode querer ajudar as crianças no mundo em desenvolvimento que estão morrendo de desnutrição. Se você se prontifica a ir e ajudar, isso significa que você aceita viver uma vida simples. Você é capaz de fazê-lo, porque tem a força de um desejo saudável. Cada um de nós pode olhar para ver se podemos reconhecer nosso desejo mais profundo, se é saudável ou não, e se ele está nos trazendo sofrimento ou felicidade, porque esse é o alimento que nutre nossas vidas,
Para ilustrar o terceiro alimento, o Buda usou a imagem de dois homens fortes arrastando um terceiro homem em direção a um poço de brasas. O jovem que está arrastando não quer morrer. Assim, os dois homens fortes representam esse tipo de vontade negativa dentro de nós que é muito forte, mas que só nos traz mais sofrimento.
Exemplos de vontade tóxicos são o desejo por sexo, fama, riqueza, vingança e fazer com que outros sofram. Se você é motivado por esse tipo de desejo, é como se o desejo tivesse te raptado e você está sendo puxado na direção da morte.
O quarto tipo de alimento é a consciência coletiva. Somos influenciados pelas formas de pensar das pessoas ao nosso redor, e consumimos os seus pontos de vista de muitas maneiras. A consciência individual é feita da consciência coletiva e a consciência coletiva é feita da consciência individual. É a nossa consciência que projeta o nosso mundo.
Para ilustrar este alimento, o Buda usa o exemplo de um criminoso que foi capturado e é levado diante do rei. O rei ordena que o criminoso seja executado por esfaqueamento cem vezes. Mas na manhã seguinte, depois de ter sido esfaqueado, o criminoso não morre. Assim, o rei ordena que ao meio-dia o criminoso seja executado sendo esfaqueado mais cem vezes. Mas ainda assim o criminoso não morre. Então, o rei ordena que ele seja executado naquela noite sendo esfaqueado cem vezes mais.
As feridas provocadas pela consciência coletiva podem ser tão dolorosas como aquelas facadas. Receber toxinas do ambiente é como ser esfaqueado centenas de vezes. Se vivemos em um ambiente onde as pessoas ao nosso redor são muito irritadiças, violentas e cruéis, mais cedo ou mais tarde, você vai se tornar irritado e cruel como eles. Isso acontece mesmo se não quisermos porque nós e especialmente os nossos filhos somos continuamente influenciados e penetrado pela consciência coletiva do nosso meio ambiente.
(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Good Citzens” - Tradução Leonardo Dobbin)
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