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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
Alcançando a Felicidade
Quando estamos com dor de dentes, sabemos que não ter dor de dentes é felicidade. Mais tarde, quando a dor cessa, não damos mais valor à ausência de dor de dentes. A prática da atenção plena nos ajuda a dar valor ao bem que já está manifestado. Com a atenção plena, seremos gratos por nossa felicidade, e talvez sejamos capazes de fazê-Ia durar mais. Eu costumo perguntar aos psicoterapeutas: "Por que vocês só falam com os clientes sobre seus sofrimentos? Por que não os ajudam a entrar em contato com as sementes da felicidade que eles já possuem?" Os psicoterapeutas devem ajudar seus pacientes a entrar em contato com a Terceira Nobre Verdade, a cessação do sofrimento. Eu os encorajo a praticar com seus pacientes a meditação andando e a meditação ao tomar chá, para poder irrigar as sementes da alegria presentes nas pessoas.
Faça a si mesmo a seguinte pergunta: "O que alimenta a alegria em mim? O que nutre a alegria nos outros? Será que estou alimentando suficientemente a alegria em mim mesmo e nos outros?" Estas são perguntas referentes à Terceira Nobre Verdade. A cessação do sofrimento o bem-estar estará disponível se soubermos usufruir das preciosas jóias que já possuímos. Você tem olhos que enxergam, pulmões que respiram, pernas que andam e lábios capazes de sorrir.
Quando está sofrendo, considere sua situação, e encontre as condições de felicidade que estão presentes, inteiramente disponíveis. Quando começamos o primeiro estágio da Terceira Nobre Verdade, já possuímos alguma felicidade, mas não temos consciência clara disso. Somos livres, mas não sabemos que somos livres. Quando jovens, somos fortes e saudáveis, mas não damos valor a isso. Mesmo se alguém tentar nos dizer isso, não conseguiremos entender o que temos. Só quando tivermos dificuldades para andar é que entenderemos como é maravilhoso ter duas pernas saudáveis.
O primeiro giro da Terceira Nobre Verdade é o "Reconhecimento" da possibilidade da ausência do sofrimento e da presença da paz. Se não temos paz e alegria neste momento, podemos ao menos nos lembrar da paz e da alegria experimentadas no passado, ou observar a paz e a alegria dos outros. Então entenderemos que a felicidade é possível. O segundo giro consiste em nos "encorajarmos" a encontrar paz e alegria. Se você quer ter um jardim, precisará se curvar para tocar o solo. A jardinagem é uma prática, não uma idéia. Para praticar as Quatro Nobres Verdades você tem que entrar em contato com aquelas coisas que lhe trazem paz e alegria. Quando faz isso, você compreende que caminhar na terra é um milagre, lavar a louça é um milagre, e conviver com sua comunidade de amigos também é um milagre. O maior milagre de todos é estar vivo.
Podemos fazer cessar nosso sofrimento só por entender que ele não vale a pena! Quantas pessoas se matam por causa da fúria e do desespero? Nesse momento, elas não conseguem enxergar que uma grande felicidade está sempre disponível. A atenção plena consegue eliminar este ponto de vista estreito e limitado. O Buda enfrentou seu próprio sofrimento de frente, e descobriu o caminho da liberação. Não fuja das coisas que são desagradáveis para buscar aquilo que é prazeroso. Coloque as mãos na terra. Enfrente suas dificuldades e adquira uma nova felicidade.
Um aluno me disse: "Quando eu vou a festas, as pessoas parecem estar se divertindo bastante. Mas quando olho sob a face, só vejo ansiedade e sofrimento." No início do caminho, a alegria é sempre limitada, especialmente o tipo de alegria que só serve para encobrir sofrimento. Admita o seu sofrimento, sorria para ele, e descubra a fonte de felicidade que está diante de você. Os Budas e os bodhisattvas também sofrem. A diferença entre eles e você é que eles sabem corno transformar o sofrimento em alegria e compaixão. Como bons jardineiros orgânicos, eles não discriminam a favor das flores ou contra o lixo. Eles sabem como transformar lixo em flores.
Não jogue fora seu sofrimento, mas entre em contato com ele. Olhe-o de frente, e sua alegria se aprofundará. Você já sabe que tanto a dor quanto a alegria não são permanentes. Aprenda, portanto, a arte de cultivar a alegria. Pratique isto e chegue ao terceiro giro da Terceira Nobre Verdade, a "realização" de que sofrimento e felicidade não são coisas diferentes. Quando se chega a este estágio, a alegria não é mais uma coisa frágil, mas se converte em alegria verdadeira.
A Quarta Nobre Verdade é a forma de sair do sofrimento. Primeiro o médico observa a natureza de nosso sofrimento, e a seguir confirma que a remoção da dor é possível, receitando uma maneira de fazer isso. Ao praticar o primeiro giro da roda da Quarta Nobre Verdade, nós "reconhecemos" que o Caminho Óctuplo a Compreensão Correta, o Pensamento Correto, a Fala Correta, a Ação Correta, o Meio de Vida Correto, o Esforço Correto, a Atenção Plena Correta e a Concentração Correta pode nos conduzir para fora do sofrimento. Só que ainda não sabemos como fazer isso. No segundo giro, nós nos "encorajamos" a praticar esse caminho.
Isto é conseguido através de aprendizado, da reflexão e da prática. À medida que aprendemos, quer seja lendo, ouvindo ou discutindo o assunto, precisamos estar abertos para ver formas de colocar tudo isso em prática. Se o aprendizado não for seguido por reflexão e prática, não será um verdadeiro aprendizado. Nesta fase, reconhecemos que o caminho tem tudo a ver com as nossas dificuldades concretas. Uma prática que não lida com o sofrimento concreto não é um caminho que nos sirva. Muitas pessoas despertam durante os períodos difíceis de suas vidas, quando entendem que uma vida irresponsável resultou em dor, e que a transformação de seu estilo de vida pode colocar um ponto final no sofrimento.
A transformação é gradual, mas depois que enxergamos com clareza as causas de nossos problemas, estamos em condições de fazer esforço para mudar nosso comportamento e fazer cessar o sofrimento. Se sabemos que nosso coração não está funcionando bem, e que o álcool, cigarros e o colesterol são as causas, tentaremos deixar de ingerir tais substâncias. No segundo estágio do caminho, haverá um aumento diário da liberdade. O caminho se torna real quando colocamos em prática aquilo que aprendemos.
O Buda nos aconselhou a identificar os tipos de nutrientes que alimentam nossa dor e simplesmente parar de ingeri-los. Fazemos o melhor que podemos, e pedimos ajuda aos nossos irmãos e irmãs. Não podemos esperar que nossas dificuldades desapareçam sozinhas. Para isso, é preciso fazer determinadas coisas e deixar de fazer outras. No instante em que decidimos parar de alimentar a dor, um caminho surge diante de nós, o Nobre Caminho Óctuplo para a felicidade. O Buda é um médico. É por isso que nos convida a trazer nosso sofrimento até ele. Nós também somos médicos. Precisamos estar decididos a transformar nossas dificuldades e confirmar que o bem-estar é possível. O Buda nos mostrou o Nobre Caminho Óctuplo para o bem-estar e nos incentivou a trilhá-lo. O terceiro giro da roda das Quatro Nobre Verdades é a "realização" de que já estamos praticando este caminho.
Quando você recebe um kung-an (koan) de seu mestre de meditação, como, por exemplo, "Qual é o som de uma mão batendo palmas?" ou "Por que Bodhidharma veio para o ocidente?", é preciso perguntar a si mesmo: "O que isso tem a ver com meu sofrimento minha depressão, meu medo ou minha raiva?" Se não tiver nada a ver com seus problemas reais, talvez não seja este o caminho de que você precisa. Pode ser apenas uma forma de escapar. Pratique o kung-an de uma forma que seja útil para transformar o seu sofrimento. "Isto é sofrimento. Este sofrimento precisa ser visto com clareza. As raízes deste sofrimento precisam ser compreendidas com clareza. Eu já vi este sofrimento, já vi como ele se manifesta, seu conteúdo e suas raízes."
Estas são práticas, não simples afirmações. "Compreender as coisas como elas são" (yatha bhuta jiíana) surge de nossa vida e de nossa prática. Quando o monge Gavampati ouviu seus colegas monges dizerem: "Aquele que vê o sofrimento vê a formação do sofrimento, o fim do sofrimento e também o caminho", ele acrescentou: "Com meus próprios ouvidos eu ouvi o Buda dizer: 'Monges, todo aquele que vê o sofrimento vê a formação do sofrimento, o fim do sofrimento e o caminho que leva ao fim do sofrimento. Todo aquele que vê a formação do sofrimento vê o sofrimento, vê o fim do sofrimento e o caminho. Todo aquele que vê o fim do sofrimento vê o sofrimento, a formação do sofrimento e o caminho. Todo aquele que vê o caminho que leva ao fim do sofrimento vê o sofrimento, a formação do sofrimento e o fim do sofrimento."'2 A interdependência é uma característica de todos os ensinamentos do Buda. Quando entramos em contato com um elemento entramos em contato com todos.
É importante entender a natureza interdependente das Quatro Nobres Verdades. Quando contemplamos qualquer uma das Quatro Nobres Verdades, vemos também as outras três. Quando contemplamos a verdade do sofrimento, vemos a causa do sofrimento. Contemplando a Primeira Nobre Verdade, enxergamos a Segunda, a Terceira e a Quarta Verdades. As Quatro Nobres Verdades são uma só.
Precisamos do sofrimento para conseguir enxergar o caminho. A origem da dor, a cessação do sofrimento e o caminho que leva à cessação do sofrimento são todos encontrados no âmago do sofrimento. Se tivermos medo de entrar em contato com o nosso sofrimento, não conseguiremos percorrer o caminho da paz, da alegria e da liberação. Não fuja. Entre em contato com seu sofrimento e abrace-o. Faça as pazes com ele. O Buda disse: "No instante em que você sabe como o seu sofrimento surgiu, já está a caminho de se libertar dele." Se você tem consciência do que acontece, e como isso chegou a acontecer, já está a caminho da emancipação.
Vamos reformular as Quatro Nobres Verdades. "Cessação", a Terceira Nobre Verdade, significa a ausência de sofrimento ou a presença de bem-estar. Em vez de chamar de "cessação", vamos simplesmente dizer "bem-estar". Se fizermos isso, podemos chamar a Quarta Nobre Verdade de "Nobre Caminho Óctuplo que Conduz ao Bem-estar." A seguir, em vez de chamar a Segunda Nobre Verdade de "origem do sofrimento", podemos dizer que existe um caminho óctuplo indigno que conduz ao sofrimento, um "caminho de oito práticas errôneas" compreensão errônea, pensamento errôneo, fala errônea, ação errônea, meio de vida errôneo, esforço errôneo, atenção plena errônea e concentração errônea. Talvez seja útil renumerar as Quatro Nobres Verdades como se segue, para as pessoas de nossa época:
(1) Bem-estar (tradicionalmente o número 3, ou "cessação do sofrimento");
(2) Nobre Caminho Óctuplo que Conduz ao Bem-estar (tradicionalmente o número 4);
(3) Sofrimento (tradicionalmente o número 1); e
(4) Caminho Óctuplo Indigno que Conduz ao Sofrimento (tradicionalmente o número 2, "origem do sofrimento").
Se vivermos de acordo com o Nobre Caminho Óctuplo, cultivaremos o bem-estar e nossa vida estará sempre cheia de alegria, tranqüilidade e espontaneidade. Mas se nosso caminho não for nobre, se em nossa vida diária houver desejos ardentes, ódio, ignorância e medo, se nós praticamos o caminho óctuplo indigno, o sofrimento será o resultado natural. Nossa prática consiste em enfrentar o sofrimento e transformá-la, para gerar o nosso bem-estar. Precisamos estudar o Nobre Caminho Óctuplo e aprender formas de colocá-lo em prática em nossa vida diária.
(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)
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