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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

O Caminho do Bem Estar (parte 1)

 

Querida Sangha, hoje, por favor, me permitam falar um pouco sobre as Quatro Nobres Verdades. Primeiramente, eu devo escrever as Quatro Nobres Verdades no quadro. Há um modo de expressá-las onde para cada Nobre Verdade adicionamos uma palavra:

 

1. Sofrimento

2. O caminho para o sofrimento

3. O fim do caminho do sofrimento

4. O caminho para o fim do caminho do sofrimento

 

Esta é a forma indiana, na qual usamos o modo negativo. No modo ocidental usamos a palavra “bem-estar”, que é mais positiva. Muitos eruditos já falaram bastante sobre as Quatro Nobres Verdades e eles têm certamente idéias sobre elas. Na verdade, elas são uma prática, e não precisamos ser eruditos para entendê-las. Precisamos apenas ser praticantes. Não precisamos nem mesmo ser budistas. Nós apenas praticamos.

 

Este é um ensinamento muito básico do Buda, porque ele viu o quanto é benéfico para nós. Temos muita sorte que 2.600 anos depois temos a oportunidade de possuirmos em nossas mãos essa prática, exatamente como era usada na antiga Índia e usá-las no nosso tempo.

 

Portanto de forma a praticar, eu gostaria de sugerir que usássemos uma das práticas que Thay já ensinou: vipashyana, olhar em profundidade. Não precisamos estar sempre sentados em uma almofada na sala de meditação de forma a praticar o olhar em profundidade. Podemos estar sentados na nossa mesa com uma caneta e um pedaço de papel ou podemos estar em um ônibus ou trem. Assim que nos estabelecemos em shamata, parar, acalmar, então podemos sempre praticar vipashyana.

 

Para sua prática, eu sugeriria que você tomasse um pedaço de papel e o dobrasse em três para formar três colunas. Embora haja Quatro Nobres Verdades, não precisamos de ter uma coluna para a terceira porque como Thay nos tem ensinado, não há um caminho para a paz, a paz é o caminho. Não há um caminho para a cura, a cura é o caminho. Portanto, o mesmo podemos dizer: não há um caminho para o bem-estar, o bem-estar é o caminho. A Quarta Nobre verdade é o caminho para o bem-estar, portanto a Terceira Nobre Verdade e a Quarta são só um exercício.

 

A Primeira Nobre Verdade é muito essencial. Sem isto, as outras Nobres Verdades não podem estar lá. As Quatro Nobres Verdades intersão; você pratica uma e as outras três já estão presentes. No Coração da Prajnaparamita dizemos: “Nenhum sofrimento, nenhuma causa do sofrimento, nenhum fim do sofrimento, e nenhum caminho”. E isto é o mesmo que dizer que o sofrimento não tem existência separada. Ao praticarmos, começaremos a entender isso. Isto não é teoria. O Dharma está disponível para nós vermos diretamente quando o colocamos em prática na nossa vida diária.

 

Sua primeira coluna é a Primeira Nobre Verdade. Algumas pessoas ficam presas na primeira coluna, mas se praticarmos não ficaremos presos aí. Não diremos: “Oh, querido, tudo é sofrimento!” Esta é a abordagem do erudito, mas nossa abordagem é nossa experiência real. Portanto na primeira coluna escreva tudo que na sua vida pessoal é sentida como sendo sofrimento. Pode ser fisiológico, psicológico ou físico. Portanto escreva, talvez, “desespero” – esta é a emoção na qual você submerge às vezes. Ou escreva “depressão”. E você pode escrever uma dor física que você tem.

 

Você precisa olhar profundamente porque às vezes não nem mesmo reconhecemos que temos sofrimento. Há algo que quer ser transformado, talvez dos nossos ancestrais, que dorme profundamente em nossa consciência. Está pedindo para ser transformado, mas não ouvimos o chamado. Pode haver raiva aí, ou depressão, mas não as reconhecemos plenamente. É como alguém muito bêbado que diz: “Eu não estou bêbado”. Alguém que está com raiva pode dizer: “Oh, eu não estou com raiva, não há nada para se ter raiva.” Mas olhando profundamente podemos reconhecê-la. Portanto escreva.

 

Tendo escrito tudo isto, olhamos para ela no rosto. Na minha experiência pessoal, este é um tremendo alívio. Você pode ser capaz de fazer isto sozinho ou podemos pedir para alguém nos ajudar. Podemos ir ao médico ou ao psicoterapeuta, e eles podem nos falar quais são os nossos sofrimentos, se não os vimos. Mas principalmente, é algo que devemos ver por nós mesmos. Portanto mesmo ainda estando na Primeira Nobre Verdade, nós já, por encararmos como verdade, começamos a vê-las como são.

 

Isto é algo que o Buda nos ensina muito claramente. No Sutra Satipatthana, o Sutra dos Quatro Estabelecimentos de Plena Atenção, na última seção de plena atenção nos objetos da mente, há uma frase que o praticante está consciente do sofrimento “exatamente como é”. Nós não aumentamos, nem diminuímos ou fingimos que ele não está lá. Apenas olhamos para ele como é e quando fazemos isso, o aceitamos. Este é o primeiro passo para a cura.

 

Isto é o que fazemos com nossas emoções fortes. Se há uma emoção forte que surge frequentemente, que bloqueia nosso caminho, a reconhecemos exatamente como é. Solidão: exatamente como é. Escreva.

 

Agora que você já está praticando olhar em profundidade, já está na segunda coluna. Na sua mente inconsciente a segunda coluna começou a se revelar. A segunda coluna é “o caminho que leva à primeira coluna.” Isto é o que Thay sempre fala: O Buda nos falou que sem comida nada pode sobreviver. Nenhuma emoção, nada físico, nenhum estado psicológico pode sobreviver sem comida.

 

O Buda disse que se você puder ver a origem da comida que está alimentando sua emoção, pode parar de ingerir esta comida particular, seja ela comida física ou impressão sensorial, então você já está liberado, já se transformou.

 

O “caminho” é a causa. Quais são as causas do sofrimento? O que leva ao sofrimento? Para cada ponto de sofrimento que você escreveu na primeira coluna, na segunda coluna você pode escrever aquilo que o está causando.

 

Talvez seja o que você consome pela boca. Pode ser sua falta entendimento sobre o que a prática é; você não entendeu que a prática é para alegria e para cura. Talvez seja devido ao que você quer, seus desejos – você quer ser famoso, quer ser admirado, quer ter uma posição ou você está com medo de perder essas coisas. Talvez existam dificuldades que começaram na sua infância e você não conseguiu ainda abraçar sua criança de cinco anos plenamente. Estes todos são modos de sofrimento para você conferir. E, é claro, como Thay disse, talvez sejam os programas de televisão, os jornais ou as conversas ao telefone. Você pode escrevê-las.

 

O terceiro exercício é o caminho para o bem estar, ou o caminho para o fim do caminho que leva ao sofrimento. Não vamos apenas cortar o sofrimento fora, bani-lo, mas vamos descobrir suas causas. E vamos remover as causas, porque não queremos tratar os sintomas, queremos tratar as raízes do nosso sofrimento. Portanto é por isso que às vezes dizemos: “o caminho para o fim do caminho que leva ao sofrimento” – o caminho do bem-estar. O Buda ensinou o caminho para o bem estar como sendo o Nobre Caminho Óctuplo.

 

Quando você faz a terceira parte do exercício pode usar estes ensinamentos do Buda para te ajudar. Você adapta cada um dos oito aspectos do Nobre Caminho Óctuplo para sua doença, seu próprio sofrimento.

 

Visão Correta

 

Visão Correta é o modo que você tem para olhar a realidade, para olhar para o mundo. O Buda ensinou a verdade da impermanência, a verdade do não-eu e a verdade do nirvana. Se tivermos a visão correta, haverá o reconhecimento da impermanência, não-eu e nirvana. Se não há isto, então haverá sofrimento. Portanto isto pode ser parte da cura de parte do nosso sofrimento.

 

Quando estamos em paz com a impermanência da nossa saúde, da nossa vida, então podemos fazer o nosso melhor para lucrarmos dos dias e meses que nos restam, de um modo que seja benéfico para nós e nossos descendentes. O mesmo é verdade com o ensinamento do não-eu, ou não ser um ser separado. Minha felicidade é a sua felicidade. É claro, na minhas relações familiares, quando eu vejo isto, trará muito mais bem-estar para mim e minha família.

 

Nirvana significa apenas não ser capturado por nenhuma visão, ser livre de visões. Quando somos capturados em uma visão, quando devemos estar certos e estamos prontos para lutar e morrer pela nossa visão, sofremos muito. Quando estamos em desespero sobre o futuro do nosso planeta, podemos nos tornar muito dogmáticos e presos a nossas visões, e isto nos coloca em desacordo com outras pessoas. O único modo que podemos salvar o planeta é através da irmandade, que significa deixar ir nossas visões. Mas isso não significa que não nos importamos. Ver que o planeta é impermanente não significa que não nos importamos, que não vamos fazer nada. Significa que faremos tudo que pudermos, mas faremos de forma pacífica. Não sermos capturados por nossas visões, não significa que não vemos o perigo e não fazemos tudo que podemos para prevenir que o perigo aconteça.

 

Pensamento Correto

 

O segundo aspecto é o pensamento correto. Ser plenamente conscientes dos nossos pensamentos – saber o que estamos pensando e onde nosso pensamento está nos levando – é também importante. O modo que julgamos e acusamos outras pessoas nos leva ao sofrimento e também ao deles. Se pudermos ter pensamentos compassivos, sem julgamento, sem acusações, este é o caminho para o nosso bem-estar.

 

Todos os tipos de pensamento que temos – nossos complexos, culpas, nos comparar com os outros – são ligados a nossa idéia de ter um eu separado. Nosso pensamento constante é um mecanismo para manter nossa idéia viva de um eu separado.

 

O terceiro tipo de alimento que o Buda ensinou é ligado com o pensamento. O alimento - do que eu pretendo fazer, o que eu decido fazer, o que eu quero fazer - é às vezes chamado volição, força de vontade. Este tipo de comida pode nos dar uma grande parcela de energia. Para explicar este tipo de comida, o Buda contou uma história. Suponha que exista um jovem que é forte e em boa saúde, morando em uma cidade. Fora desta cidade há um grande buraco que é coberto com carvão incandescente. Não há chamas, ele não emite fumaça porque é muito quente. Cada vez que o jovem sai da cidade para perto do buraco, ele não se sente seguro, porque se cair no buraco, sofrerá muito, podendo até morrer. Portanto ele decide deixar esta cidade e viver em outro lugar onde não haja um buraco com carvões. Esta é a versão chinesa.

 

A versão Pali é um pouco diferente. Há também um jovem que vive na cidade e também há um buraco com carvões. Mas ele não toma a decisão de ir e viver em outro lugar. Há dois homens fortes na cidade. Eles pegam o jovem e o empurram na direção do buraco, e ele não quer absolutamente ir, mas de nenhum modo consegue pará-los. Eles são muito mais fortes que o jovem. Ele sabia que se caísse no buraco não iria sobreviver e iria sofrer muito. Mesmo assim, os dois homens o arrastam naquela direção. Esta é outra forma, mais dramática e drástica que o Buda teve para descrever nosso alimento da intenção. Muita energia nos empurra na direção que não queremos ir. Estas intenções não estão necessariamente claras na nossa mente consciente. Podemos ter coisas profundas em nós nos dirigindo em uma certa direção sem mesmo saber. Por exemplo, ambição, o desejo por fama, o desejo por dinheiro, o desejo por sexo. Todas essas coisas podem ser fontes fortes de alimento.

 

Na nossa meditação, quando estivermos fazendo nossas listas, precisamos olhar profundamente. Qual é meu desejo mais profundo? Quais as coisas que estão me empurrando ao longo de minha vida? Quero ser admirado? Quero ter uma posição? Quero ser útil? Estas coisas estão estimulando meu modo de ser.

 

Quando descobrimos o que nos está motivando, podemos ser capazes de parar a fonte de alimento e ir em uma direção diferente – para termos mais tempo para nossa família, para ter tempo de estar na natureza, para ter tempo de estar com nossa sangha, para construir nossa sangha. Porque é onde nos sentimos mais felizes, sendo uno com a sangha. Ser parte do corpo da sangha, sem ter uma idéia de um eu separado. Algumas pessoas podem ficar exaustos por liderar uma sangha, portanto temos que ter cuidado com isso também. Quando estamos na sangha, somos apenas parte da sangha, parte do rio, parte do fluxo.

 

(Palestra de Dharma da irmã Annabel, abadessa do Centro de Dharma Green Mountain em Vermont, ligado a Plum Village, em 24 de agosto de 2007 – Traduzido da revista Mindfulness Bell 48 por Leonardo Dobbin)

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