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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
As chaves para o Reino de Deus
Palestra do Dharma da véspera de Ano Novo por Thich Nhat Hanh - 31 de dezembro de 2005
Boa tarde, querida Sangha. Nos ensinos do Cristianismo e do Judaísmo existe o “Reino de Deus”. No budismo, falamos sobre a Terra do Buda, o Campo do Buda. Talvez você preferisse chamá-lo de “Reino do Buda”. Em Plum Village nós dizemos que o Reino de Deus é agora ou nunca e esta é a nossa prática. Em Plum Village o reino de Deus, a Terra Pura do Buda, não é apenas uma idéia. É algo que você pode provar, tocar, algo que você pode viver na sua vida diária. É possível reconhecer o Reino de Deus, o Reino do Buda, quando ele está ali. Na tradição budista a Terra do Buda ou a Terra Pura é um centro de prática onde o Buda e os grandes Bodhisattvas são professores e todos nós somos praticantes.
Praticar é trazer a tona mais entendimento e compaixão. A felicidade não seria possível sem entendimento e compaixão. Minha definição do Reino de Deus é de que ele é um lugar onde existe entendimento, onde existe compaixão, e onde todos nós podemos aprender a ser mais compreensivos e compassivos. Nisso todos concordamos. Mas há algo mais sobre o que nós deveríamos concordar – se há ou não sofrimento no Reino de Deus, na Terra Pura do Buda.
Se paramos para olhar a questão profundamente, veremos que o entendimento e a compaixão se originam do sofrimento. Entendimento é o entendimento do sofrimento, e compaixão é o tipo de energia que pode transformar o sofrimento. Se o sofrimento não está presente, nós não temos meios de cultivar o nosso entendimento e nossa compaixão. Isso é algo muito simples de ver.
Se você vem a Plum Village no verão, encontra muitas flores de lótus. Sem a lama, as flores de lótus não podem crescer. Você não pode separar as flores de lótus da lama. O mesmo ocorre com o entendimento e o amor. Estes são dois tipos de flores que crescem no terreno do sofrimento.
Eu não gostaria de enviar meus filhos a um lugar onde não houvesse sofrimento, porque eu sei que em tal lugar eles não teriam a chance de desenvolver sua compaixão e seu entendimento. Eu não sei se meus amigos que vêm do Cristianismo ou do Judaísmo podem aceitar isso – que há sofrimento no Reino de Deus – mas no ensino Budista está claro que o sofrimento e a felicidade “inter-são”. Onde não há sofrimento, também não há felicidade. Sabemos por nossas próprias experiências que é impossível cultivar mais entendimento e compaixão se o sofrimento não estiver presente. É com a lama que podemos criar flores. É com o sofrimento que podemos criar compaixão e entendimento.
Eu posso aceitar, e muitos amigos meus podem aceitar, que há sofrimento na Terra Pura, no Campo do Buda, porque nós precisamos de sofrimento para cultivar nosso entendimento e compaixão, os quais são essenciais para a Terra Pura, para o Reino de Deus. Nós aprendemos através do sofrimento. Se somos capazes de cultivar o entendimento das coisas, isso é devido ao sofrimento. Se você é capaz de cultivar a compaixão, é por conta da existência do sofrimento.
Eu penso que seja muito importante re-examinarmos nossa noção de “Reino de Deus”, da Terra Pura do Buda, e não mais pensar que este é um local onde não existe sofrimento de modo algum. Logicamente, isso é impossível. Muitos de nós pensam no Reino de Deus, no Reino do Buda, como algo que pertence ao futuro, para além desta vida. Em termos de tempo e espaço, o Reino de Deus estaria distante.
Eu lembro quando, mais ou menos há 40 anos, fui pela primeira vez aos Estados Unidos para falar sobre a guerra no Vietnam. Fui convidado por muitos grupos e me lembro de ter falado em uma igreja nos arredores da Filadélfia onde a maioria dos praticantes eram negros. Eu disse a eles que o Reino de Deus é o “agora”, está bem aqui, e que você não tem que morrer para entrar no Reino de Deus. De fato, você tem que estar bem vivo para ser capaz de entrar nele. Para mim, estar vivo é estar presente, estar concentrado e livre. É este o tipo de passaporte que você precisa para ser aceito no Reino de Deus: plena consciência, concentração, liberdade.
Se você pertence à população do Reino de Deus, você é um praticante porque você está produzindo entendimento e amor em sua vida diária. Isso faz com que o Reino de Deus continue a ser o Reino de Deus. Se a população do Reino não pratica entendimento e amor, ela perde o Reino em dois segundos porque a essência do Reino é entendimento e amor.
É muito fácil visualizar o Reino do Buda como um centro de prática onde há professores do dharma nos ensinando, nos ajudando a cultivar o entendimento e a compaixão. Todos gostam da prática, porque na medida em que produzem mais entendimento e compaixão, sofrem menos. São capazes de transformar o sofrimento em compaixão, em entendimento, em felicidade. A prática em Plum Village é a de experimentar o Reino de Deus, a Pura Terra do Buda, em sua vida diária.
Tudo bem, você pode dizer que o Reino é agora, é bem aqui, mas isso não é suficiente. Nós temos que ajudar o Reino a se manifestar. Sem plena consciência, concentração e um pouquinho de liberdade você não pode fazer isso.
O Reino de Deus está situado em seu córtex cerebral, em sua mente. Muitos de nós tem um computador, um PC ou um Macintosh, e muitos de nós usam seu computador apenas para fazer trabalhos como processamento de texto ou verificação da bolsa de valores. Mas um PC ou um Macintosh medianos podem fazer muito mais do que isso. Nós usamos apenas dez por centro da sua capacidade. Se soubermos como fazer uso das outras capacidades do computador, poderemos realizar muitas outras coisas.
O mesmo é verdadeiro em relação ao nosso córtex cerebral, em relação a nossa mente e espírito. Se você sabe como usar a poderosa energia do entendimento e da compaixão, pode resolver muitos problemas da sua vida diária. Há um poderoso computador dentro de nós e devemos aprender como usá-lo de modo apropriado para que sejamos capazes de lidar com as situações diárias que nos fazem sofrer.
O Buda propôs que praticássemos de acordo com o Nobre Caminho Óctuplo. Se seguirmos suas instruções de praticar a visão correta, o pensamento correto, a fala correta e a ação correta, seremos capazes de explorar um vasto território de nossa mente e permitir que aqueles poderes maravilhosos venham e nos resgatem. De fato, limitamos a nós mesmos a um pequeno círculo. Nosso pensar é muito estreito, e é por isso que sofremos muito mais do que um Buda ou um Bodhisattva.
Nós pensamos o tempo todo, e muitos de nossos pensamentos não são muito positivos; eles nos fazem vítimas do pensamento negativo. Quando você diz, “não sirvo para nada”, este é o tipo do pensamento que tem o poder de fazer você sofrer. “Eu nunca vou conseguir terminar tal coisa. Eu não consigo meditar. Eu não consigo perdoar. Eu estou desesperado. Eu nunca terei sucesso se fizer tal coisa”. Ou, “ele quer me destruir. Ninguém me ama”. Este tipo de pensamento é o oposto daquilo que o Buda chamou de pensamento correto.
Há em nós a capacidade de entender e de amar. Como não estamos acostumados a estar em contato com a região do entendimento e da compaixão, não conseguimos produzir pensamentos belos, na direção de um pensar correto.
Imagine que um amigo ou mesmo seu irmão ou irmã não entendem você. Imagine que você pensa que seu professor não gosta de você. Quando você cultiva este tipo de pensamento, você sofre. Aquele pensamento pode não ter nada a ver com o que acontece realmente. Você continua a ruminar este pensamento ou outros do mesmo tipo, e logo você cairá em um estado de depressão porque você não está praticando o pensamento correto.
“Meu irmão deve ter dito algo sobre mim para meu professor. É por isso que ele não olhou para mim esta manhã”. Seu pensamento pode estar totalmente errado, e você deve estar atento para o fato de que seu pensamento é só um pensamento. Não corresponde à realidade. Se você pensar “Meu professor não me entende, mas eu sou capaz de ajudá-lo a me entender”, este é um pensamento positivo. Você não é mais uma vítima.
O Buda propôs a prática do pensamento correto. Durante a meditação sentado ou durante os horários de trabalho, pensamentos como aqueles podem surgir, mas você não se permite ser uma vítima de pensamentos negativos. Você somente permite que eles venham e você os reconhece. Isto é um pensamento, e este pensamento é apenas um pensamento; não é a realidade. Mais tarde, você pode escrevê-lo em um pedaço de papel e olhar para ele. Quando você é capaz de reconhecer seu pensamento, não mais é vitima dele. Você é você mesmo, mesmo que estes pensamentos sejam negativos.
Um pensamento não vem do nada. Há um campo de onde ele surge. Em sua mente há medo, raiva, preocupação, mal entendimentos. E um pensamento emerge destes territórios. Mas em sua mente há também o território vasto da compaixão e do entendimento. Você deve entrar em contato com o Reino do Buda, o Reino de Deus, em sua mente. Então estes territórios darão origem a muitos pensamentos belos, na direção do pensamento correto.
Quando você reconhece um pensamento, talvez você tenha vontade de sorrir para ele e fazer a pergunta, em qual campo da minha mente ele foi produzido? Você não precisa fazer muito esforço. Você apenas sorri para seu pensamento e agora você reconhece que o pensamento nasceu do território da percepção errada, do medo, da raiva ou do ciúme. Quando você é capaz de produzir um pensamento que vai na direção do pensamento correto, este pensamento terá um efeito imediato em sua saúde física e mental. E ao mesmo tempo ele tem um efeito na saúde do mundo.
Quando você produz um pensamento negativo que se originou de seu medo, raiva ou pessimismo, tais como “eu não valho nada, eu não consigo fazer nada, minha vida é uma derrota”, este tipo de pensamento terá um efeito muito ruim em sua saúde mental e física. A prática oferecida pelo Buda não é a de suprimir o pensamento negativo, mas a de estar atento e consciente. “Este é um pensamento negativo. Eu permito que ele seja reconhecido”. Quando você é capaz de reconhecer tal pensamento, alcança um grau de liberdade pois não é mais uma vítima daquele pensamento.
Mas se você não é um praticante, continua ruminando a situação negativa e isso o fará cair em um estado de depressão. Reconhecer a presença de um pensamento ou sentimento é muito importante. Esta é a prática básica de um praticante de meditação. Você não tenta suprimir os sentimentos e os pensamentos. Você permite que seus pensamentos e sentimentos se manifestem. Mas você tem que “estar lá” para ser capaz de reconhecer sua presença. Fazendo isso, você está cultivando sua liberdade.
Em nossa vida diária nós permitimos que estes pensamentos e sentimentos apareçam e não somos capazes de reconhecer sua presença. Por causa disso, nos tornamos vítimas destes pensamentos, sentimentos e emoções. Nós nos perdemos no reino dos sentimentos, pensamentos e percepções porque não estamos realmente presentes. A prática é estar presente no aqui e no agora e testemunhar o que está acontecendo, examinar isso, estar atento. Esta é a prática da liberdade.
Estamos acostumados a permitir que nossa mente persiga o prazer e evite aquilo que é desagradável. Nossos pensamentos seguem o mesmo padrão: correr, seguir, procurar aquilo que é prazeroso; e tentar fugir, evitar o desagradável. Por causa disso, perdemos nossa liberdade. Não sabemos que estamos correndo atrás de algo e tentando evitar algo. Nós somos carregados pelos nossos pensamentos, nossos sentimentos, nossas percepções.
Imagine um avião no piloto automático. O avião pode alcançar seu destino, pode fazer as coisas para as quais foi requisitado, sem a necessidade da presença de qualquer ser humano dentro dele. Muito freqüentemente nós nos comportamos desta forma. Ficamos no piloto automático. Não estamos presentes para testemunhar o que está acontecendo.
A prática que é proposta pelo Buda é a de estar aqui, ficar presente, estar verdadeiramente vivo. É você saber o valor de cada pensamento, de cada sentimento, de todas as suas percepções. É saber que há territórios os quais você não descobriu dentro de você mesmo. É não se permitir ser arrebatado. Você quer ser você mesmo. Você não quer estar no piloto automático.
Toda vez que um pensamento, sentimento, ou emoção emerge, você quer estar ali para controlar a situação. Você não quer ser levado. Você sorri para seus pensamentos, para seus sentimentos, para suas emoções. Você não quer reagir imediatamente porque a energia de hábito em você o impulsiona a responder rapidamente aos sentimentos, às emoções, ao pensamento que acabou se surgir. Isso é extremamente importante.
Você diz a si mesmo: “Bom, isso é um pensamento, isso é um sentimento, isso é uma emoção. Eu sei que eles estão em mim, mas eu não sou apenas aquele pensamento, aquele sentimento, aquela emoção. Sou muito mais do que isso. Eu tenho um tesouro de entendimento, compaixão, amor, sabedoria em mim, e eu quero que estes elementos avancem para me ajudar a colocar a situação em ordem, para me ajudar a estar no caminho correto”.
Você dá a si mesmo o tempo para inspirar e expirar o ar. Você não se apressa em reagir ou tomar alguma atitude. E enquanto você está respirando você dá aos maravilhosos elementos positivos dentro de você a chance de intervir.
Há um computador dentro de nós, e este computador tem muito poder. Se você souber como usar este poder você pode transformar a situação. Você pode trazer muita luz, alegria e compaixão para a situação. Por não se permitir ser levado embora, você dá a si mesmo uma perspectiva alternativa através da qual você pode ver as coisas mais claramente. Você não está com pressa de reagir, de chegar logo a uma conclusão. Você apenas fica ciente da situação, o que está se manifestando em você e ao seu redor. A prática da respiração consciente e do caminhar consciente, te dá espaço, o que permite que os elementos positivos intervenham. Você permite que o Buda, o Reino de Deus em você tenham uma chance.
Dentro de nós há um território de depressão, um território de inferno, e nossos pensamentos negativos e emoções são tecidos nestes territórios. Mas nós sabemos que em nós há também o território do Reino de Deus, da Terra do Buda. Há a semente poderosa da compaixão e sabedoria dentro de nós. Se dermos chance a elas, elas poderão vir e nos resgatar.
(Palestra do Dharma da véspera de Ano Novo por Thich Nhat Hanh -31 de dezembro de 2005)
Traduzido por Letícia Rothen
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