Sangha
Virtual
Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
Como cultivar o não-medo
Sinto-me muito grato por fazer parte de uma comunidade espiritual que está praticando para ser livre de qualquer dogma ou ideologia, para ser livre do medo. Todos os dias eu me refugio ativamente nesta comunidade, me refugio na sangha. Quando faço isso me sinto estável. Sinto como se não fosse um eu separado e posso morrer a qualquer momento, e está tudo bem, porque minha vida tem sentido.
Às vezes também sinto tristeza e pesar. Mas eu sei que são apenas emoções e se eu não as alimentar, eles passam. Um dos aspectos do Buda que sinto diferente de quando comecei a praticar o Budismo é que quando comecei, acreditava que o Buda nunca tivesse nenhuma formação mental negativa. Ele tinha transformado tudo. Agora vejo isso de forma diferente. Vejo que o Buda tinha essas emoções, mas não as deixou invadir e tomar conta da sua mente. Ele sabia como cuidar da sua dor, cuidar da sua raiva. Isso é iluminação.
Thay disse: “Se você sabe sofrer, você sofre menos”. Portanto, existe uma arte do sofrimento e quando aprendemos a cuidar desse sofrimento com atenção plena, então coisas maravilhosas podem acontecer. Novas possibilidades que não víamos antes. Por isso, sempre digo que essa é minha prática favorita. Pode ser que eu encontre uma nova prática que ame ainda mais, mas até agora eu realmente adoro apenas iluminar meu sofrimento com a luz da atenção plena.
Às vezes é como uma fornalha, há raiva, há negação, ignorância. “Como pode ser que isso tenha acontecido desse modo?” E eu vejo essa emoção, e eu digo, sim, você é a ignorância. Eu conheço você. Você tentou se esconder.
Quantos de vocês já viram O Mágico de Oz? No final, há um grande Mágico de Oz na parede. Dorothy, o Espantalho, o Leão, e o Homem de Lata têm muito medo do bruxo. Eles veem esta aparição gigante, mas então o cachorro Toto corre e vê um homem atrás de uma cortina. Ele abre a cortina e você vê o homem ali com um monte de alavancas e roldanas e coisas assim. Ele está de alguma forma projetando essa imagem de si mesmo que é muito assustadora.
Essa é a mente. Nossa mente está sempre projetando esses grandes demônios. Há coisas realmente horríveis acontecendo no mundo, que vão acontecer no futuro, e que aconteceram no passado. Mas o que fazemos disso em nossa mente? O que fazemos com essas injustiças, esse sofrimento, essa dor? Será que o transformamos num grande monstro e nos sentimos dominados pelo medo? Ou fazemos como o Toto, abrindo a cortina e vendo que o que pensamos ser não é a coisa real. É apenas uma aparição.
Com esse insight, eu aceito que este corpo é impermanente, e que posso perder um membro, posso perder uma perna, posso ter câncer, seja lá o que for, a qualquer momento. Não sabemos o que acontecerá com nosso corpo. Mas se vivermos com medo durante toda a vida, o que acontecerá com o nosso corpo? O que acontecerá com a nossa comunidade? O que acontecerá com nosso planeta? Então, não consigo ver que a vida vale a pena ser vivida. Na verdade, acho que quanto mais cultivo o não-medo, mais sou capaz de realmente ajudar. Isso não significa que eu não tenha medo surgindo em mim.
Lembro que perguntei a Thay sobre a prática do não medo. Eu disse: "Eu me deparei com uma cascavel, e ela estava chocalhando, enrolada”. Eu estava olhando para o meu medo, como se estivesse perto daquela cascavel. Eu perguntei a Thay: "Como cultivamos o não-medo?"
Thay deu uma bela resposta sobre nossas percepções, e como podemos parar de alimentá-las. Alimentamos nossas percepções sobre o mundo e como as coisas acontecerão no futuro, e isso rega a emoção do medo. Ele torna-se mais forte e maior. A maioria das emoções sabemos que passam muito rapidamente. Talvez apenas um minuto e meio, dois minutos no máximo. Mas se continuarmos a alimentá-las, elas continuarão. No final Thay disse: “Fique longe de cobras”.
O seu medo e a sua dor estão lhe dizendo algo. É meio machista ou você sabe, delirante, trabalhar em um estado onde você não tem nenhum medo. Isso simplesmente não é nada inteligente. Mais inteligente é remover as percepções que alimentam esse medo, para que, quando o medo surgir, ele não tome conta da sua mente. À medida que crescemos e nos tornamos mais maduros, vemos que há muitas coisas que encontramos nas nossas vidas que nunca foram vistas antes pelos seres humanos neste planeta e não há resposta fácil, não há resposta pronta.
Portanto, se não soubermos refugiar-nos na nossa própria intuição, se não soubermos entrar em nós mesmos, para compreender a natureza do nosso medo, não saberemos como lidar com essas novas situações. Queremos fugir, cobrir as nossas cabeças, apagar o mundo. Acho que todos nós já experimentamos isso quando crianças e talvez também como adultos. Assim, à medida que continuamos a olhar para a vida de Thay, vemos repetidas vezes que ele enfrentou seus medos, medos muito desafiadores.
Aprendemos sobre a derrota dos franceses pelo Viet Minh, que levou a Dien Bien Phu, e levou aos Acordos de Genebra. O Vietnam sendo, pelo menos no papel, cortado pela metade. Não exatamente metade, mas um norte e um sul, e centenas de milhares de refugiados que atravessaram o país para um lado ou para outro. Tempos muito difíceis. Então, quando olhamos para os nossos tempos, podemos ter muito medo surgindo. Mas podemos nos colocar na situação de Thay, onde os soldados atiravam no templo, deixando buracos de bala.
Mais tarde, na década de 60, sabemos que alguém jogou uma granada na cabana de Thay e ela ricocheteou na cortina que estava aberta. Na verdade, Thay não estava lá. Portanto, precisamos de aprender a lidar com o nosso medo se quisermos realmente aprofundar a forma como podemos ajudar este mundo e oferecer uma resposta positiva às situações muito desafiantes que enfrentamos hoje com guerras crescentes, e instabilidade política.
Em As Oito Realizações dos Grandes Seres, que é um texto maravilhoso que encorajo você a estudar em nosso livro de cânticos, está escrito que "regimes políticos estão sujeitos à queda", aqueles que gostamos e aqueles de que não gostamos. Não podemos encontrar estabilidade num governo ou num governante. Às vezes a sangha se tornou muito pequena. Mas porque o dharma ainda existe, ele cresce novamente dependendo das causas e condições.
Assim, neste curso, continuamos a ver o caminho de Thay e como Thay cresce em meio a forças históricas que não estão separadas de Thay, e que se tornam Thay. Elas se tornam o que pensamos ser, o mestre Thich Nhat Hanh. Podemos lembrar que também somos lançados nessa situação em que nos encontramos hoje, e se aprendermos como realmente tomar refúgio no dharma, poderemos encontrar solidez, encontrar paz e felicidade, e poderemos realmente ser eficazes em fazer uma mudança. É isso que tenho aprendido cada dia mais.
Mas posso dizer que ontem à noite estava deitado e disse: "Agora é real. A prática não é apenas um exercício.” Porque às vezes eu pensava que havia alguma parte de mim, que ainda dizia: "Oh, nós estamos apenas testando isso, vamos ver se funciona", e tudo bem, finalmente, parecia que isso não era mais um experimento. Era a realidade.
Fiquei um pouco surpreso porque pensei que eu não estava lá, que havia uma parte de mim que ainda estava tentando ser o observador olhando a história de uma boa distância, na tela de um computador, da Wikipédia, ou do conforto das minhas cobertas quentes.
Como vivemos este momento fazendo com que seja um momento lendário? A maneira como vivemos este momento e o que está acontecendo aqui em Deer Park é histórico e todos nós fazemos parte dessa história. Estamos criando um bom tipo de história, um tipo de história nutritiva, o tipo de história na qual tantas gerações futuras poderão se refugiar.
Thay também está ciente disso. À medida que você começa a perceber, a maneira como Thay está vivendo, a maneira como Thay está aprendendo. É um ensinamento a forma como Thay aprende. Quando olhamos para isso agora, apenas vemos que são pequenos traços que Thay deixa para trás. Sentimos que estamos entendendo a história completa.
O irmão Phap Luu vai ser abrangente e contar toda a história de Thay, de Thich Nhat Hanh. Mas não é assim, nós só temos pequenas gravuras. Como quando você passa por uma árvore e deixa uma pequena marca ao passar e então você tenta ver o que isso significa. O que Thay estava sentindo naquele momento? Como foi a experiência? Não podemos saber exatamente.
Até nós mesmos, quando olhamos para trás em nossas próprias vidas, percebemos quantas vezes perdemos 99% ou mais da experiência real vivida. Então, se nos conhecemos, e nossas próprias memórias são assim, quanto mais as de outra pessoa. Então é importante lembrar à medida que continuamos, estamos construindo uma espécie de narrativa, e que essa narrativa está sempre aberta, nunca está fechada.
Isso também é verdade na narrativa de nossas vidas, tome cuidado se você já escreveu o final de sua própria narrativa. Alguns de nós visualizam o fim e se não chegarmos lá não ficamos muito felizes. Mesmo que cheguemos lá, talvez também não fiquemos felizes. Por isso tratamos Thay com o mesmo respeito, e não podemos reduzir seu caminho a uma narrativa. É assim que estou tentando fazer ao dar essa aula. Estamos contando histórias juntos e essas histórias podem nos ajudar a aprofundar nosso próprio caminho.
(transcrição de vídeo do Br. Phap Luu– transcrito do vídeo do YouTube
https://youtu.be/98Xip_uarUw)
Traduzido por Leonardo Dobbin)
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