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Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
Como a Mente Funciona
Antes de podermos caminhar por nossos antepassados, antes de podermos caminhar por aqueles que nos prejudicaram, precisamos aprender a caminhar por nós mesmos. Para fazer isso, precisamos entender nossas mentes e a conexão entre nossos pés e nossas cabeças. O mestre Zen vietnamita Thuong Chieu disse "Quando nós entendermos como nossa mente trabalha, nossa prática fica fácil." Em outras palavras, se nós pudermos caminhar em plena atenção com nossa consciência, nossos pés seguirão naturalmente.
O Buda ensinou que a consciência é sempre contínua, como um fluxo de água. Há quatro tipos de consciência: consciência mental, consciência dos sentidos, consciência armazenadora, e manas. Às vezes, estes quatro tipos de consciência são considerados oito, com a consciência dos sentidos sendo dividida em cinco (olhos, orelhas, boca, nariz, toque). Quando nós caminharmos em plena atenção, todas as quatro camadas da consciência estarão operando.
Consciência mental é o primeiro tipo de consciência. Gasta a maior parte de nossa energia. Consciência mental é nossa consciência de trabalho que faz julgamentos e planos; é a parte de nossa consciência que se preocupa e analisa. Quando nós falarmos de consciência mental, também estamos falando de consciência do corpo, porque consciência mental não é possível sem o cérebro. Corpo e mente simplesmente são dois aspectos da mesma coisa. Corpo sem consciência não é uma realidade, um corpo vivo. E a consciência não pode se manifestar sem um corpo.
É possível nos treinarmos para remover a falsa distinção entre cérebro e consciência. Nós não deveríamos dizer que consciência nasce do cérebro, porque o oposto é verdade: o cérebro nasce da consciência. O cérebro é só dois por cento do peso do corpo, mas consome vinte por cento da energia do corpo. Portanto usar a consciência mental é muito caro. Pensar, se preocupar, e planejar tomam muita energia.
Podemos economizar energia treinando nossa consciência mental no hábito de plena atenção. Plena atenção nos mantém no momento presente e permite a nossa consciência mental relaxar e deixar ir a energia da preocupação sobre o passado ou o futuro.
O segundo nível de consciência é a consciência dos sentidos, a consciência que vem dos nossos cinco sentidos: visão, audição, gosto, toque, e cheiro. Quando nós caminhamos, usamos este tipo de consciência também. Nós vemos a nossa frente, provamos e cheiramos o ar, ouvimos sons e nossos pés tocam o chão. Às vezes chamamos estes sentidos de "portões" ou “portas" porque todos os objetos de percepção entram na consciência devido ao nosso contato sensorial com eles. A consciência dos sentidos envolve três elementos: primeiro, o órgão do sentido (olhos, orelhas, nariz, língua, ou corpo); segundo, o próprio objeto (o objeto que nós estamos cheirando ou o som que nós estamos ouvindo); e finalmente, a nossa experiência do que nós estamos vendo, ouvindo, cheirando, provando, ou tocando.
A terceira camada de consciência, a consciência armazenadora, é a mais profunda. Há muitos nomes para este tipo de consciência. Na tradição de Mahayana é chamada de consciência armazenadora, ou alaya em sânscrito. A tradição de Theravada usa a palavra pali bhavanga para descrever esta consciência. Bhavanga quer dizer constantemente fluindo, como um rio. A consciência armazenadora também é chamada às vezes de consciência raiz ou sarvabijaka que significa "a totalidade das sementes". Em vietnamita, nós chamamos a consciência armazenadora de tang. Tang significa manter e preservar.
Estes nomes diferentes se referem aos três aspectos da consciência armazenadora. O primeiro significado é o de um lugar, um "armazém" aonde são mantidos todos os tipos de sementes e informações. Uma semente de mostarda é muito pequena. Mas se a semente de mostarda tiver a oportunidade de brotar, a casca exterior quebrará, e o que é muito pequeno por dentro ficará bem grande - uma planta enorme de mostarda. Nos Evangelhos há a imagem de uma semente de mostarda que tem a capacidade de se tornar uma árvore enorme onde muitos pássaros podem vir e tomar refúgio. A semente de mostarda é o símbolo dos conteúdos da consciência armazenadora. Tudo que vemos ou tocamos tem uma semente repousada profundamente em nossa consciência armazenadora.
O segundo significado é sugerido pelo nome vietnamita tang, porque a consciência armazenadora não apenas carrega toda a informação, mas a mantém e os preserva. O terceiro significado é sugerido por bhavanga, o sentido de processar e transformar.
A consciência armazenadora é como um museu. Um museu só pode ser chamado de um museu quando houver coisas nele. Quando não houver nada dentro, você pode chamá-lo de um edifício, mas não um museu. O guardião é o responsável pelo museu. A função dele é manter os vários objetos preservados e não permitir que sejam roubados. Mas tem que haver coisas para serem armazenadas, coisas para serem mantidas. A consciência armazenadora se refere ao armazém e também ao que é armazenado, isto é, toda a informação do passado, dos nossos antepassados, e todas as informações recebidas de outras consciências. Na tradição budista, esta informação é armazenada como bija, sementes.
Suponha que esta manhã você ouça certo canto pela primeira vez. Sua orelha e a música se tocam e provocam a manifestação da formação mental chamada toque que faz a consciência armazenadora vibrar. Aquela informação, uma semente nova, entra no continuum da consciência armazenadora. Ela tem a capacidade de receber a semente e armazená-la em seu coração. A consciência armazenadora preserva toda a informação que recebe. Mas a função dela só não é receber e armazenar estas sementes; seu trabalho também é processar esta informação.
O trabalho de processar neste nível não é caro. A consciência armazenadora não gasta tanta energia quanto, por exemplo, a consciência mental. A consciência armazenadora pode processar esta informação sem muito trabalho. Assim se você quiser economizar sua energia, não pense muito a toa, não planeje muito, e não se preocupe muito. Permita que sua consciência armazenadora faça a maioria do trabalho.
A consciência armazenadora opera na ausência da consciência mental. Pode fazer muitas coisas. Pode fazer muito planejamento; pode tomar muitas decisões sem você saber. Quando entramos em uma loja de departamentos e procuramos um chapéu ou uma camisa, temos a impressão, enquanto olhamos para os artigos exibidos, que temos livre arbítrio e que, se as finanças permitirem, nós somos livres para escolher tudo o que quisermos. Se o vendedor nos perguntar o que gostamos, podemos apontar ou podemos verbalizar o objeto de nosso desejo. E provavelmente temos a impressão que somos pessoas livres neste momento, ao usar nossa consciência mental para selecionar coisas das quais gostamos. Mas isso é uma ilusão. Tudo já foi decidido na consciência armazenadora. Naquele momento fomos capturados; não somos pessoas livres. Nosso senso de beleza, nosso gostar ou repugnar, foi decidido certamente e muito discretamente no nível da consciência armazenadora.
É uma ilusão que somos livres. O grau de liberdade que nossa consciência mental tem é na verdade muito pequeno. A consciência armazenadora dita muitas das coisas que nós fazemos, porque ela continuamente recebe, abraça, mantém, processa, e toma muitas decisões sem a participação da consciência mental. Mas se nós soubermos a prática, poderemos influenciar nossa consciência armazenadora; poderemos ajudar a influenciar o modo como nossa consciência armazenadora armazena e processa informação para tomar melhores decisões. Nós podemos influenciá-las.
Assim como a consciência mental e a consciência dos sentidos, a consciência armazenadora consome. Quando você estiver ao redor de um grupo de pessoas, embora queira ser você mesmo, você está consumindo os seus modos, e você está consumindo as suas consciências armazenadoras. Nossa consciência é alimentada por outras consciências. O modo que nós tomamos decisões, nosso gosto e aversão, depende do modo coletivo de ver as coisas. Você pode não ver algo como bonito, mas se muitas pessoas pensam que isto é bonito, então lentamente você pode vir também a aceitar isto como bonito, porque a consciência individual é composta da consciência coletiva.
O valor do dólar é composto do pensamento coletivo das pessoas, não só de elementos econômicos objetivos. Os medos das pessoas, seus desejos, e expectativas fazem o dólar subir e baixar. Nós somos influenciados pelos modos coletivos de ver e pensar. É por isso que selecionar as pessoas que estão ao seu redor é muito importante. É muito importante se cercar de pessoas que têm bondade, compreensão e compaixão, porque dia e noite somos influenciados pela consciência coletiva. A consciência armazenadora nos oferece iluminação e transformação. Esta possibilidade é contida em seu terceiro significado, sua natureza de sempre fluir.
A consciência armazenadora é como um jardim onde nós podemos plantar as sementes de flores, frutas, e legumes, e então flores, frutas, e legumes crescerão. A consciência mental é só o jardineiro. Um jardineiro pode ajudar e cuidar da terra, mas o jardineiro tem que acreditar na terra, acreditar que ela pode nos oferecer frutas, flores, e legumes. Como praticantes, nós não podemos confiar apenas em nossa consciência mental; temos que confiar em nossa consciência armazenadora também. Estão sendo tomadas decisões lá embaixo.
Suponha que você digite algo em seu computador e esta informação é armazenada no disco rígido. Aquele disco rígido é como a consciência armazenadora. Embora a informação não apareça na tela, ainda está lá. Você só precisa clicar e ela se manifesta. Bija, as sementes na consciência armazenadora, são como os dados que você armazena em seu computador. Se você quiser, pode clicar e ajudá-los a aparecer na tela da consciência mental. A consciência mental é como uma tela e a consciência armazenadora é como o disco rígido, porque pode armazenar muito dentro dela. A consciência armazenadora tem a capacidade de armazenar, manter, e preservar informação de forma que não possa ser apagada.
Porém, diferentemente da informação de um disco rígido todas as sementes tem uma natureza orgânica e podem ser modificadas. Por exemplo, a semente de ódio pode ser debilitada e sua energia pode ser transformada na energia de compaixão. A semente de amor pode ser regada e pode ser fortalecida. A natureza da informação que está sendo mantida e processada pela consciência armazenadora está sempre fluindo e sempre mudando. Pode ser transformado amor em ódio, e pode ser transformado ódio de volta em amor.
A consciência armazenadora também é uma vítima. É um objeto de apego; não é livre, nela há elementos de ignorância - ilusão, raiva, medo - e estes elementos formam uma força de energia que agarra e que quer possuir. Este é o quarto nível de consciência chamado manas que eu gosto de traduzir como "cogitação". Manas tem na sua raiz a convicção em um ego separado, a convicção em uma pessoa. Esta consciência, o sentimento e instinto chamado "eu sou," é profundamente enraizado na consciência armazenadora. Não é uma visão da consciência mental. Profundamente enraizado nas profundidades da consciência armazenadora está a idéia de que há um ego que está separado dos elementos não-eu. A função de manas é agarrar a consciência armazenadora como um eu separado.
Outro modo de pensar em manas é como consciência adana. Adana quer dizer "apropriação". Imagine que de uma videira nasce um broto, e então o broto retrocede, abraça e cerca o tronco da árvore. Esta profundamente arraigada ilusão - a convicção que há um ego – está lá na consciência armazenadora como o resultado da ignorância e medo, e dá origem a uma energia que se volta e abraça a consciência armazenadora e faz disto o único objeto de seu amor.
Manas está sempre operando. Nunca deixa a consciência armazenadora se libertar. Sempre está abraçando, sempre segurando ou grudando na consciência armazenadora. Acredita que a consciência armazenadora é o objeto de seu amor. É por isso que a consciência armazenadora não é livre. Há uma ilusão que a consciência armazenadora sou "eu," é meu amado, assim eu não posso deixá-la ir. Dia e noite há um segredo, uma cogitação profunda que este sou eu, isto é meu, e eu tenho que fazer tudo que eu puder para agarrar, proteger, e fazer isto ser meu. Manas nasce e é enraizada na consciência armazenadora. Nasce da consciência armazenadora, se vira e abraça consciência armazenadora como seu objeto: "Você é meu amado, você sou eu." A função de manas é se apropriar da consciência armazenadora como sua.
(Traduzido do livro “Buddha Mind, Budda Body” – Thich Nhat Hanh)
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