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Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Como praticar quando nos sentimos vazios por dentro

 

Entre nós, qualquer um pode ter esse sentimento de vazio, ou de solidão. Precisamos de amor. Precisamos de alguém que nos ame para que nos sintamos menos frios por dentro, menos solitários por dentro, menos vazios por dentro. Precisamos que a outra pessoa esteja ao nosso lado para que nos sintamos menos vazios por dentro. Temos um vazio - um vácuo por dentro e não conseguimos lidar com esse vazio, com esse vácuo. Queremos encontrar alguém e colocá-lo nesse espaço para preenchê-lo.

 

Às vezes, eles nos deixam empurrá-los para aquele espaço e eles perdem a liberdade. Mas se a outra pessoa não nos deixa fazer isso e não quer ficar naquele vácuo, ficamos bravos com ela. Dizemos: “Essa pessoa não me ama”. Nós só queremos aquela pessoa. Só queremos agarrá-la e empurrá-la para este vazio dentro de nós para que possamos sentir-nos menos solitários e essa pessoa perde a liberdade. Queremos apenas que essa pessoa seja uma sombra nossa.

 

Essa pessoa perde sua liberdade. Mas se essa pessoa não nos deixa fazer isso, ficamos bravos com ela. Nós punimos essa pessoa. Dizemos: "Você não me ama!" Isso não é amor. Primeiro, temos que aprender a lidar com esse vazio interior, esse vazio estéril, esse vácuo dentro de nós. Mas como podemos fazer isso? Como podemos lidar com esse vazio – o que chamamos de “solidão”, bem no fundo de nós?

 

Da última vez contei a história de um rio que passa o tempo todo perseguindo nuvens no céu. Uma nuvem após a outra. As nuvens por natureza são impermanentes. Elas estão aqui, agora, mas à tarde já terão ido embora. Choramos, estamos ansiosos. Passamos o dia todo perseguindo e agarrando nuvens. O rio sente esse vazio por dentro. O rio sente que há um vazio por dentro e quer agarrar-se às nuvens e esse jogo de busca demora bastante. Mal termina de perseguir uma nuvem, ele persegue outra e nunca se sente satisfeito ou realizado.

 

Enquanto isso, o rio não faz ideia de que ele é as nuvens. Se voltar a si mesmo, verá que tudo são nuvens e essa percepção permitirá que o rio não se sinta mais solitário e vazio. O que você é, o que você estava procurando, você já tem. O que você quer ser, você já é.

 

Mas isso só pode ser feito com atenção plena, concentração e insight. Quando você senta e acompanha sua respiração, veja que lá no fundo você já tem tudo que precisa. O Buda, o Dharma, a Sangha, basicamente é tudo que você precisa. Ao ver que existe uma aspiração forte, existe a bodhicitta – sua mente de iniciante, você se sentirá realizado, completo, pleno. Você não vai mais querer correr atrás de nada.

 

Isso pode ser feito com atenção plena, concentração e insight. Plena atenção significa a capacidade de estar consciente de todas as maravilhas que existem no momento presente. Concentração significa ser capaz de preservar e manter essa consciência durante um longo período de tempo. E insight significa o tipo de visão que nos faz superar todas as ansiedades, tristezas, dores, medos, sentimentos de vazio e preocupações. Como praticantes de plena atenção, devemos aprender a fazer bom uso dessas energias.

 

Se não sentimos a paz, sensação de contentamento, se não nos sentimos realizados e satisfeitos ao dar passos como esse, não temos nada para dedicar a ninguém. Por esse motivo, quando há essa sensação de vazio por dentro, a gente não consegue lidar com ela. Continuamos procurando alguém que seja um objeto que será empurrado para esse nosso vácuo interior. Isso não é amor. Isso não é amor verdadeiro. Esse é o desejo de possuir, de usar o outro como nosso objeto.

 

Isso não é amor verdadeiro. O verdadeiro amor é dedicação. Antes de podermos dedicar algo a alguém, temos que saber dedicar a nós mesmos. Temos que nos oferecer um pouco de frescor. Temos que nos oferecer um pouco de alegria. Temos que nos oferecer um pouco de paz. Temos que nos oferecer um pouco de lazer, tranquilidade e liberdade. Isso pode ser feito totalmente com as práticas diárias que aprendemos a fazer aqui.

 

Se quisermos realmente praticar plena atenção, um dia é suficiente para observar um bom progresso, melhor se forem muitos dias. Uma hora prova ser suficiente para fazer a diferença. Isso é chamado de “começar a praticar”. Pratique com verdadeira determinação. Mas esta prática não é um trabalho árduo, pode ser muito agradável. Se não temos estabilidade e solidez, se temos medo por dentro, deveríamos usar esta prática de estarmos presentes para nós mesmos. De ter atenção plena suficiente.

 

Estabelecemos a atenção plena ao caminhar, ficar em pé, deitar e sentar, para ter essa energia para reconhecer e abraçar esse sentimento de vazio, ansiedade e medo interior, para que possamos ter um pouco de estabilidade e solidez. Da última vez falamos sobre a sensação de vazio interior. Cada um de nós, muitas vezes vai em busca de algum objeto para encobrir esse vazio interior.

 

Somos como uma panela que não tem tampa. Cada pessoa, cada panela, está buscando uma tampa para colocar em cima, pensando que, uma vez tampada a panela, haverá paz ou segurança. Mas isso está longe da realidade. Depois de tampada, ela transborda. Apaga o fogo. Isso deixa uma bagunça. Temos esse vazio estéril por dentro. Também temos desejos internos e também temos medos por dentro. Pensamos que talvez neste mundo inteiro, não haverá ninguém que possa cuidar de nós ou olhar por nós, ou ser uma fonte de consolo para nós.

 

Esse é o tipo de amor que nasce desde que ainda éramos bebês. No momento em que acabamos de chegar a este mundo, embora tivéssemos olhos, ainda não podíamos usá-los. Embora tivéssemos ouvidos, ainda não podíamos usá-los. Embora tivéssemos duas pernas e dois braços, ainda não podíamos usar as duas pernas e os dois braços. Não conseguíamos cuidar de nós mesmos. Como uma criança de 3 meses, ou de seis meses, ou de um ano pode cuidar de si mesma? Por isso o bebê se sente extremamente medroso, extremamente vazio. Se não houver uma mamãe ou babá cuidando deles quando estiverem com fome ou com frio, o bebê não terá ideia de como superar esses momentos difíceis.

 

O momento em que nascemos já era um momento de perigo. Dar à luz é uma questão de vida ou morte, especialmente nos velhos tempos. Quando crescemos, isso ainda persiste. É o mesmo com todos – seja menino ou menina. Sentimo-nos como um pote sem tampa ou descoberto e vamos procurar a tampa. Mas não sabemos que a raiz de tudo isso vem da infância.

 

Quando encontramos alguém, ficamos muito felizes. A panela agora tem tampa. Nos sentimos seguros e protegidos. Essa pessoa, a pessoa que acabamos de encontrar, tem sido objeto de nossa busca desde o nosso nascimento. Que é uma mãe ou uma babá, ou um pai. Sentados ao lado do nosso parceiro, pensamos, "Parece bom agora. Posso me sentir seguro agora. Há alguém cuidando de mim agora. Eu tenho um pai, uma mãe, uma babá agora." Portanto, nosso parceiro é apenas a continuação de nosso pai, mãe ou babá. Nada mais.

 

Depois de encontrar um, nos sentimos seguros e protegidos. Mas esta sensação de segurança pode durar apenas alguns meses ou um ano. Vemos que a outra pessoa não é pai, mãe ou babá. Essa pessoa, em vez de cuidar de nós, causou-nos inúmeras dificuldades. Nesse ponto, retomamos nossa busca por outra tampa.

 

Então o bebê em nós ainda está muito vivo. O medo ainda está lá e esse desejo, essa expectativa, ainda existe. Por essa razão, quando nos sentimos sozinhos, solitários, desamparados, isso é apenas a continuação do desejo e do medo que temos desde o nosso nascimento. Temos que meditar sobre isso. Temos que usar a atenção plena, a concentração e o insight para nos lembrar: "Não somos mais um bebê.”

 

Já crescemos. Já somos adultos agora. Podemos andar sozinhos, podemos respirar sozinhos, podemos cozinhar sozinhos. Podemos tomar conta de nós mesmos. Não precisamos mais de uma babá. Não precisamos de uma mãe, não precisamos mais de um pai. Estamos bem sozinhos.

 

Deveríamos nos lembrar disso. Caso contrário, continuaremos procurando uma tampa de panela, como um hábito. Se percebemos o que chamamos de plenitude ou "realização", sentindo-nos satisfeitos e contentes, é porque praticamos profundamente o suficiente para ver isso. “Já tenho tudo que preciso, não preciso mais procurar alguém ou alguma coisa.” Por essa razão, em nosso primeiro mantra, “Estou aqui para você”, “você” aqui, em primeiro lugar, significa “eu mesmo”. Não tenha medo. Se estamos presentes para nós mesmos, significa que já temos uma tampa.

 

Porém, entre nós, poucos conseguem estar presentes para nós mesmos. Somos incapazes de estar presentes para nós mesmos. Queremos que outra pessoa esteja presente para preenchermos esse vazio estéril dentro de nós. Somos incapazes de fazer isso. Encontramos outra pessoa para fazer isso por nós. Vamos procurar um pai. Vamos procurar uma mãe. Vamos procurar uma babá. Essa é a verdade.

 

Por essa razão, o primeiro insight a ser percebido é que não precisamos de uma tampa. Que não precisamos de babá. Que não precisamos de uma mãe. Porque somos adultos agora. Somos capazes de estar presentes por nós mesmos agora. O fato é que temos duas pernas muito fortes. Podemos almoçar sozinhos. O fato é que podemos conseguir água por conta própria. O fato é que podemos trabalhar para ter para ter comida, para ter para ter um lugar para morar e descansar. Podemos cuidar de nós mesmos. Não precisamos de uma mãe, de uma babá ou de outra pessoa fazendo isso por nós.

 

Essa é a prática da atenção plena. Atenção plena significa estar consciente de que não somos mais um bebê impotente. Já somos adultos e podemos cuidar bem de nós mesmos. Por essa razão, nossa prática é estar disponível para nós mesmos. Não podemos ir procurar alguém que esteja disponível para nós e que cuide de nós. Temos que nos tornar um verdadeiro adulto. Qual é o sentido de estarmos presentes para nós mesmos? Para cuidar de nós mesmos.

 

Em primeiro lugar, estamos presentes. Corpo e mente voltam a ficar juntos. Estamos presentes para reconhecer todas as maravilhas da vida que existem dentro e ao nosso redor para sermos nutridos. Somos capazes de tocar e usar esses elementos maravilhosos para nos nutrir. Não precisamos de outra pessoa cuidando de nós. Esse é o papel da atenção plena. Quando respiramos ou caminhamos com atenção plena, trazemos a mente de volta ao corpo. Quando corpo e mente estão em perfeita unidade, estamos presentes no momento, estamos presentes para nós mesmos. Somos capazes de usar elementos maravilhosos da vida para nos nutrirmos, para nos curarmos. Não precisamos de mais ninguém. Isso é estarmos presentes para nos nutrirmos, para nos cuidarmos.

 

Em segundo lugar, se acontecer de formações mentais como tristeza, ansiedade, medo se manifestarem, estamos presentes para abraçá-las, para olhar profundamente e transformá-las. Não procuramos nem confiamos em outra pessoa para fazer isso por nós. Portanto, a prática é estar presente para nós mesmos. Deveríamos ser a nossa própria tampa de panela. Temos que ser a tampa do nosso próprio pote. Temos que saber cuidar de nós mesmos.

 

Primeiramente entre em contato e aproveite os elementos positivos para nutrir o corpo e a mente. Em segundo lugar, esteja presente para reconhecer a dor, a carência emocional, a tristeza ou mágoa, para olhar profundamente e encontrar as suas raízes e poder libertar-se dela.

 

No fundo dessa tristeza ou lamento está esse medo original e esse desejo original de ter alguém cuidando e olhando por nós porque somos impotentes. Quando percebemos que somos adultos, que não somos mais um bebê impotente, de repente, passamos a compreender a natureza profunda da formação mental que é aquela angústia, medo e desejo.

 

A verdade é que, se não podemos fazer isso, se não podemos estar presentes para nós mesmos, se não podemos ser capazes de dissolver o vazio interior graças a essa presença, mas em vez disso vamos procurar outra pessoa para ser um objeto, e empurramos essa pessoa para este vazio interior, isso significa que nós procuramos um objeto exterior para fazer o que somos incapazes de fazer interiormente.

 

Se essa pessoa não consegue fazer isso, ficamos bravos com ela, nós a odiamos e nós punimos essa pessoa. "Eu trago você para que você cuide de mim, mas você não se importa com isso." Porque talvez essa pessoa também seja incapaz de cuidar de si mesma. Quando são incapazes de cuidar de si mesmos, como poderão cuidar de nós?

 

Quando agarramos essa pessoa e a empurramos para o nosso vazio interior, não podemos ajudá-la em nada. Nós a fazemos perder a liberdade e nós mesmos também não temos liberdade. Essa é a verdade. Por essa razão, temos que olhar profundamente e com cuidado para ver qual é a verdadeira natureza do amor romântico.

 

(Palestra de Darma que combina trechos de duas palestras de Dharma dadas pelo Mestre Zen Thich Nhat Hanh em 2 e 5 de fevereiro de 2012, em Plum Village, França– transcrito do vídeo do YouTube

https://youtu.be/Fu-PlxrC3Xg)

Traduzido por Leonardo Dobbin)

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