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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
A Concentração Correta
A pratica da Concentração Correta consiste em cultivar uma mente focada, capaz de se concentrar em uma única coisa. O ideograma chinês para concentração significa, literalmente, "manter a uniformidade", nem muito alto nem muito baixo, nem excitado nem entorpecido demais. Outro termo chinês também usado algumas vezes para concentração significa "a morada da mente verdadeira".
Existem dois tipos de concentração, a ativa e a seletiva. Na concentração ativa, a mente se detêm naquilo que está acontecendo no presente momento, acompanhando inclusive as mudanças que se apresentam. O poema que se segue, composto por um monge budista, descreve a concentração ativa:
O vento assobia no bambu,
E o bambu dança.
Quando o vento cessa,
O bambu fica imóvel.
O vento chega e o bambu lhe dá boas-vindas. O vento parte e o bambu deixa que ele se vá. O poema continua:
Um pássaro prateado
Voa sobre o lago outonal.
Depois que o pássaro se vai,
A superfície do lago não tenta
Reter a imagem do pássaro.
Enquanto o pássaro voa sobre o lago, seu reflexo é nítido. Depois que o pássaro se foi, o lago reflete as nuvens e o céu com idêntica nitidez. Quando praticamos a concentração ativa, aceitamos tudo o que aparece. Não pensamos nem desejamos qualquer outra coisa. Apenas estamos focados no momento presente com todo o nosso ser. O que vier será bem-vindo. Quando o objeto de nossa concentração desaparece, a nossa mente permanece clara e límpida, como um lago sereno.
Quando praticamos a "concentração seletiva", escolhemos um objeto e permanecemos com ele. Tanto na meditação sentada ou andando, seja a sós ou na companhia de outros, continuamos praticando. Sabemos que o céu e os pássaros estão lá, mas nossa atenção permanece focada no nosso objeto. Se o objeto de nossa concentração for um problema de matemática, não iremos ver televisão nem falar ao telefone. Abandonaremos tudo o mais e permaneceremos focados no objeto. Quando estamos dirigindo, as vidas dos passageiros no carro dependem de nossa concentração.
Não usamos a concentração para fugir de nosso sofrimento, mas nos concentramos para estar cada vez mais presentes. Quer caminhando, em pé ou sentados, concentrados, as pessoas percebem nossa estabilidade e nossa quietude. Quando vivemos cada momento profundamente, a concentração emerge naturalmente, o que por sua vez faz surgir a compreensão.
A Concentração Correta conduz a felicidade e também a Ação Correta. Quanto maior for o nosso grau de concentração, melhor a qualidade de nossa vida. As moças vietnamitas ouvem com freqüência suas mães dizerem que quando se concentrarem parecerão mais bonitas. É o tipo de beleza que surge quando estamos atentos presentes aos acontecimentos do momento. Quando uma jovem se movimenta de forma descuidada, ela não parecerá tão leve nem tão à vontade. A mãe dela talvez não use essas palavras, mas desejará incentivar a filha a praticar a Concentração Correta. É uma pena que ela também não encoraje o filho a fazer a mesma coisa. Todos nós necessitamos de concentração.
Existem nove níveis de concentração meditativa. Os primeiros são as Quatro Dhyanas, que são concentrações no reino da forma. Os cinco níveis seguintes pertencem a dimensão sem-forma. Quando praticamos a primeira dhyana, ainda estamos pensando. Nos outros oito níveis, o pensar dá lugar a outras energias. A concentração na dimensão sem-forma também é praticada por outras tradições, mas fora do budismo sua finalidade geralmente é escapar do sofrimento, e não atingir a libertação que surge quando o sofrimento é compreendido. Quando você usa concentração para fugir de si mesmo ou de sua situação, está praticando a concentração errônea. Algumas vezes precisamos escapar de nossos problemas para termos um pouco de alivio, mas cedo ou tarde será preciso retornar e enfrentar aquilo que evitamos. A concentração mundana procura a fuga. A concentração supramundana busca a verdadeira libertação.
Praticar samadhi é viver com profundidade cada momento que nos é dado. Samadhi significa concentração. Para podermos nos concentrar, temos que estar conscientes, totalmente presentes e cônscios do que acontece. A atenção plena gera a concentração. Quando estamos profundamente concentrados, significa que estamos absortos no momento. Tornamo-nos o momento presente. É por isso que samadhi às vezes é traduzido como "absorção". A Atenção Plena Correta e a Concentração Correta nos elevam acima dos reinos dos prazeres dos sentidos e dos desejos, tomando-nos mais leves e mais felizes. Nosso mundo já não é tão grosseiro e pesado, o reino dos desejos, mas é o reino da materialidade sutil, ou o reino da forma.
No reino da forma, existem quatro níveis de dhyana. Através desses quatro níveis, a atenção plena, a concentração, a alegria, a felicidade, a paz e a equanimidade continuam a crescer. Depois da quarta dhyana, o praticante penetra em uma experiência mais profunda de concentração - as quatro dhyanas sem-formas - em que é possível enxergar a realidade com maior profundidade. Aqui, o desejo sensual e a materialidade revelam sua natureza ilusória e deixam de ser obstáculos. A pessoa começa finalmente a enxergar a natureza impermanente, impessoal e interdependente do mundo fenomênico. A terra, a água, o ar, o fogo, o espaço, o tempo, o nada, e as percepções, são todos interdependentes, necessitando uns dos outros para existir. Nada pode existir por si mesmo, independente do resto.
O objeto do quinto nível de concentração é o espaço ilimitado. Quando começamos a praticar este tipo de concentração, tudo parece ser espaço. Mas a medida que aprofundamos a prática, vemos que o espaço na verdade é composto de elementos "não-espaço", como terra, água, ar, fogo e consciência, e só existe neles. Considerando-se que o espaço é apenas um dentre os seis elementos que compõem todas as coisas materiais, concluímos que ele não tem existência independente. De acordo com os ensinamentos do Buda, nada tem existência separada. Portanto, o espaço e tudo o que existe é interdependente, sendo totalmente dependente dos outros cinco elementos.
O objeto do sexto nível de concentração é a consciência ilimitada. Inicialmente, vemos apenas consciência em tudo, mas aos poucos começamos a perceber que a consciência também é terra, água, ar, fogo e espaço. Tudo que é verdadeiro em relação ao espaço também é verdadeiro em relação à consciência.
O objeto do sétimo nível de concentração é o nada. Com a percepção normal, vemos flores, frutas, buIes e mesas, e achamos que eles existem independentemente uns dos outros. Mas quando observamos essa realidade mais profundamente, vemos que a fruta está dentro da flor, e que a flor, a nuvem e a terra estão dentro da fruta. Ao ultrapassarmos as aparências externas ou sinais, chegamos a "ausência de sinais". Primeiro pensamos que os membros de nossa família são separados uns dos outros, mas depois vemos que eles na verdade se contêm uns aos outros. Você é como é porque eu sou como sou. Percebemos a conexão íntima que existe entre as pessoas, e passamos a funcionar além dos sinais. Antigamente achávamos que o universo fosse povoado por milhões de entidades separadas. Agora entendemos a total "irrealidade dos sinais".
O oitavo nível de concentração é um nível onde não há nem percepção nem ausência de percepção. Reconhecemos que tudo é produzido por nossas percepções, que são, ao menos parcialmente, incorretas. Assim, entendemos que não devemos acreditar inteiramente em nossa forma anterior de ver o mundo, e buscamos um contato mais direto com a realidade. Certamente não podemos nos impedir de perceber, mas agora pelo menos já sabemos que "a percepção" significa a percepção de um sinal. Uma vez que já não mais acreditamos na realidade dos sinais, nossa percepção se transforma em sabedoria. Ultrapassamos os sinais (não-percepção), mas não nos transformamos em seres desprovidos de percepção (sem não-percepção).
O nono nível de concentração chama-se cessação. "Cessação", neste sentido, significa a cessação da ignorância contida em nossas sensações e percepções, e não a cessação das sensações e percepções em si. É aqui neste nível de concentração que emerge o insight, ou verdadeira compreensão. O poeta Nguyen Du disse: "Tão logo passamos a ver com nossos olhos e ouvir com nossos ouvidos, estamos abertos para o sofrimento." Ansiamos por um estado de concentração em que não possamos mais ver nem ouvir nada, um mundo onde não haja percepção. Desejamos nos tornar apenas um pinheiro com o vento cantando em seus galhos, porque achamos que os pinheiros não sofrem. E natural procurar um local onde não haja sofrimento.
No mundo da não-percepção, a sétima (manas) e a oitava (alaya) não-consciências continuam a funcionar como sempre, e nossa ignorância e formações internas permanecem intactas na consciência armazenadora, manifestando-se por fim na sétima não-consciência. Esta é a energia da ilusão que gera a crença em um eu separado, e distingue o eu do não-eu. Uma vez que a concentração da não-percepção não transforma a força de nossos hábitos, quando as pessoas emergem desta concentração seu sofrimento continua intacto. Mas quando o meditador consegue atingir o nono nível de concentração, o estágio de arhat, manas é transformado e as formações internas que residem na consciência armazenadora são finalmente purificadas. A maior de todas as formações internas é a ignorância da realidade da impermanência e o não-eu. Esta ignorância dá origem à ganância, ao ódio, à confusão, ao orgulho, à duvida e a todos os pontos de vista. Todas essas aflições juntas produzem uma guerra de consciência denominada manas, que sempre consegue discriminar o eu do outro.
Quando alguém pratica muito bem, o nono nível de consciência irradia sua luz sobre a realidade das coisas e transforma a ignorância. As sementes que antigamente faziam a pessoa ficar presa entre o eu e o não-eu são transformadas, alaya é libertada da restrição de manas, e manas já não tem mais a missão de construir um eu. Manas então se torna a Sabedoria da Igualdade, capaz de enxergar a interdependência e a interpenetração que fazem parte da natureza de tudo o que existe. Nessa altura, manas também já pode entender que a vida do outro é tão preciosa quanto a sua, porque não existe mais diferença entre o eu e o outro. Quando manas perde o controle da consciência armazenadora, esse repositório se torna a Sabedoria do Grande Espelho, que reflete tudo o que há no universo.
Quando o sexto nível de consciência é transformado, passa a se chamar Sabedoria da Observação Maravilhosa. A consciência mental continua a observar os fenômenos mesmo depois de se haver transformado em sabedoria, mas os observa de outra maneira, porque a mente tem consciência da natureza interdependente de tudo o que observa - portanto enxerga sempre o uno na multiplicidade, em todas as manifestações de nascimento e morte, de ir e vir etc. – sem ficar presa a ignorância. As cinco primeiras consciências se tornam a Sabedoria da Realização Maravilhosa. Nossos olhos, ouvidos, nariz, língua e corpo, que antes nos faziam sofrer, tornam-se milagres que nos conduzem ao jardim da realidade. Desta forma, a transformação de todos os níveis de consciência se realiza sob a forma das Quatro Sabedorias. Nossas percepções e consciências errôneas são transformadas graças à pratica. No nono nível de concentração, todas as oito consciências estão ativas. A percepção e as sensações ainda estão lá, mas não são mais as mesmas de antes, porque ficaram livres da ignorância.
O Buda ensinou muitas práticas de concentração. Para praticar a Concentração da Impermanência, cada vez que olharmos para a pessoa amada, devemos vê-la como impermanente, e fazer o que estiver ao nosso alcance para que ela seja feliz agora. Se você achar que a pessoa amada é permanente, talvez pense que ela nunca vai melhorar. A compreensão da impermanência nos impede de ficarmos presos no sofrimento do desejo, do apego e do desespero. Devemos ver e ouvir tudo na vida sempre com essa perspectiva.
Para praticar a Concentração sobre o Não-Eu, entre em contato com a natureza de interdependência que existe em tudo. Isso lhe trará paz e alegria, e afastará o sofrimento. A pratica da Concentração no Nirvana ajuda a entrar em contato com a dimensão maior da realidade e a se tocar o não-nascimento e a não-morte. As Concentrações sobre a Impermanência, o Não-Eu e o Nirvana são suficientes para meditarmos durante toda nossa vida. Na verdade, as três são uma só. Quando tocamos profundamente a impermanência, também entramos em contato com o Não-Eu (a interdependência) e o Nirvana. Uma única concentração contem todas as outras. Não precisamos fazer todas.
No Budismo Mahayana, existem centenas de outras concentrações, tais como a Shurangama Samadhi (a Concentração da Marcha Heróica), a Saddharmapundarika Samadhi e a Avatamsaka Samadhi. Todas são importantes e maravilhosas. De acordo com o Sutra do Lótus, temos que viver simultaneamente nas dimensões histórica e absoluta da realidade. Devemos viver nossa vida com profundidade, coma uma onda, contatando a substância água que existe em nós. Devemos andar, respirar e correr de forma a estar sempre em contato com a dimensão absoluta da realidade. Então transcenderemos a idéia de nascimento e morte, o medo de existir ou não-existir, e a visão da multiplicidade e da unidade.
O Buda não pode ser encontrado apenas no Gridhrakuta, o Pico dos Abutres. Se você escutasse no rádio que o Buda ia reaparecer no Monte Gridhrakuta, e que todo o mundo estava convidado para uma meditação andando com ele, todos os lugares de todos os aviões da Índia estariam ocupados, e talvez você ficasse frustrado porque também gostaria de participar. Mas mesmo que você tivesse a sorte de conseguir uma reserva em um vôo, não seria possível praticar a meditação andando com o Buda. Haveria uma multidão grande demais, na qual a maioria das pessoas não saberia a prática de inspirar e expirar com atenção e permanecer centrada no momento presente. Então, de que serviria ir até lá?
Contemple a sua intenção. Você quer atravessar metade do mundo só para depois poder dizer que esteve com o Buda? Muitas pessoas desejam exatamente isto. Chegam ao local de peregrinação totalmente incapazes de estar no momento presente. Depois de alguns minutos olhando o lugar, elas correm para outro local. Tiram fotos para provar que estiveram lá, ansiosas para voltar para casa e mostrar aos amigos. "Eu estive lá, está vendo? Tenho provas disso. Este aqui sou eu, em pé ao lado do Buda." Este com certeza seria o desejo da maioria das pessoas presentes lá. A grande maioria não consegue caminhar com o Buda, nem permanecer presente no aqui e agora. Elas só querem dizer: "Eu estava lá, e este aqui sou eu, ao lado do Buda." Mas não e verdade. Elas nunca estiveram lá. E aquele não e o Buda. "Estar lá" e apenas um conceito, e o Buda da foto e apenas uma aparência. Não se pode fotografar o verdadeiro Buda, nem mesmo com a máquina fotográfica mais cara do mundo.
Se você não tiver a oportunidade de ir ate a Índia, então, por favor, pratique andando em casa, e você pode segurar realmente a mão de Buda enquanto caminha. Apenas caminhe, com paz e felicidade, e o Buda estará ao seu lado. Aquele que vai até a Índia e retorna com sua foto ao lado do Buda não viu o verdadeiro Buda. Você tem dentro de si a realidade; ele tem apenas uma imagem. Não corra por aí feito um louco, atrás de oportunidades para tirar fotografias. Entre em contato com o verdadeiro Buda. Ele está sempre disponível. Tome a mão dele e pratique a meditação andando. Quando conseguir tocar a dimensão maior, estará caminhando com o Buda. A onda não precisa morrer para se tornar água, porque ela sempre foi água. Esta é a Concentração do Sutra do Lótus. Viva cada momento de sua vida profundamente, e entre em contato com a dimensão maior quando estiver caminhando, comendo, bebendo ou contemplando a estrela da manhã.
(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)
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