Sangha
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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
As diferentes faces do amor
Quando o bodhisattva chamado Mente Incansável ouviu o nome Avalokitesvara, ele perguntou ao Buda, “Porque este bodhisattva recebeu um nome tão bonito?” O Buda respondeu, “Porque as ações de Avalokitesvara podem responder às necessidades de qualquer ser em qualquer circunstância.” Então o bodhisattva Mente Incansável perguntou, “Como este bodhisattva desfruta sua estada na Terra? Como ele desfruta de sua caminhada, contemplação e andanças por esse planeta?” A palavra usada nessa pergunta é um verbo que significa relaxar, aproveitar. Respondendo a essa pergunta, o Buda falou sobre o modo que Avalokitesvara gasta seu tempo nesse planeta.
Nós todos temos tempo para passar nesse planeta e a questão é se desfrutamos esse tempo ou não. O que estamos fazendo? Realmente desfrutamos do tempo neste planeta? Carregamos muita bagagem, nos fazendo sentir pesados, sendo difícil aproveitar nosso tempo aqui?
Avalokitesvara é uma manifestação e qualquer manifestação deve ser situada no tempo e no espaço na dimensão histórica. O Buda Shakyamuni se manifestou como um príncipe, como um praticante e como um professor. Sua manifestação durou 80 anos. Nós também somos manifestações. Nós nos manifestamos na dimensão histórica e há coisas que queremos fazer e queremos desfrutar do que fazemos.
Tudo tem sua dimensão histórica e também sua dimensão última. Na dimensão última estamos em contato com a essência, a substância, a base de uma pessoa ou coisa. Na dimensão histórica entramos em contato com a aparência ou forma de algo ou alguém. Se falarmos sobre um sino, a substância que faz o sino é o metal. A forma do sino é a manifestação dessa substância. Portanto, na dimensão histórica você pode ver a dimensão última. Nós também carregamos conosco a base do nosso ser. É como a onda que se manifesta na superfície do oceano. A onda é também água e tocando a dimensão histórica da água profundamente, você toca a água, sua dimensão última.
Ontem houve uma pergunta sobre Deus. Nosso amigo perguntou, “Eu pensei que no budismo não havia Deus. Porque o Thay fala sobre o reino de Deus?” É verdade que no budismo não falamos sobre Deus, mas falamos sobre nirvana, a dimensão última. Se Deus significa dimensão última, a fundação de todas as manifestações, então há Deus no budismo. A base do ser tem a natureza do não nascimento, não morte, não indo nem vindo. Nós chamamos isso nirvana, a dimensão última. Se você entender Deus como a dimensão última, a fundação de todas as manifestações, então podemos falar de Deus. Se por Deus entendemos um velho de barba sentado nas nuvens e decidindo tudo por nós, então não falamos sobre Deus.
Qual o objetivo de um sino? Para que o sino serve? O sino nos oferece um som para a prática. Essa á a chamada dimensão da ação. Todos temos essa terceira dimensão. Embora carreguemos dentro de nós nossa natureza verdadeira, também gostamos de nos manifestar através de nossos trabalhos e atividades. O Buda queria fazer algo, por isso ele se manifestou. O sino quer fazer algo, por isso ele se manifesta como um sino. Há algo que queremos fazer na nossa manifestação atual. A dimensão da ação é conectada à dimensão histórica, e essa última é muito ligada à dimensão última.
Nosso corpo na dimensão histórica tem um começo e um fim, mas nosso corpo na dimensão última é indestrutível. Esse é nosso corpo de Dharma. Nosso corpo na dimensão histórica é o corpo da retribuição. A forma e manifestação de nosso corpo físico é resultado ou retribuição das vidas de nossos ancestrais e de nosso modo de viver e ser nesse mundo. Enquanto usamos esse corpo de retribuição, podemos praticar tocando nosso corpo de Dharma. Todos têm um corpo de Dharma, e você pode tocar seu corpo de Dharma e não mais sentir medo do nascimento e morte. O momento que a onda percebe que ela é água, não mais sente medo de ser ou não ser, nascimento e morte. Como água ela não se importa em subir ou descer. Ela pode navegar livremente nas ondas da história sem medo. O papel do bodhisattva na dimensão da ação é ajudar às pessoas a tocar profundamente sua dimensão última porque uma vez tocada, você perderá seu medo do nascimento e morte. Você percebe que essa manifestação é apenas uma continuação. Antes dessa manifestação você já estava presente nos seus ancestrais e depois que essa manifestação se desintegrar você continuará nos seus descendentes e em todas as formas de vida.
O capítulo vinte e cinco do Sutra do Lótus é chamado “Capítulo da Porta Universal”. Este capítulo fala sobre a dimensão da ação do bodhisattva Avalokitesvara. A Porta Universal se refere ao tipo de prática que pode responder a todas as situações de sofrimento em todo lugar e a qualquer tempo. Esse capítulo é sobre amor, e Avalokitesvara é o bodhisattva do amor e compaixão.
Avalokitesvara é traduzido como Quan Tu Tai ou Quan The Am em vietnamita. Quan significa observar, olhar profundamente ou reconhecer. Em sânscrito esta palavra significa o mesmo que vipasyana, olhar profundamente. Vipasyana está junto com samatha, ou parar e concentrar. Você seleciona um objeto, para e se concentra naquele objeto e olha profundamente para ele. Pode ser sua raiva, seu desespero ou uma situação difícil em que você se encontre. Tu Tai significa liberdade. Graças ao olhar em profundidade você conquista a liberdade que precisa. No Sutra do Coração o bodhisattva Avalokitesvara descobriu que tudo é vazio de uma existência separada. Tendo essa percepção, ele se tornou livre de todas as aflições. The Am significa os sons do mundo. Quan The Am é aquele que ouve profundamente os sons do mundo.
Os seres vivos se expressam de formas diferentes. Mesmo se eles se expressam bem ou não, o bodhisattva Avalokitesvara pode entendê-los sempre. Se uma criança não tem palavras suficientes para se expressar, o bodhisattva ainda é capaz de entendê-la. Se a pessoa se expressa em uma linguagem falada ou corporal, o bodhisattva também pode entender.
Avalokitesvara tem o poder de se manifestar em muitas formas e é capaz de estar presente em todo lugar ao mesmo tempo. Quando você vai a um templo, seja no Vietnã, Tibet ou China tem a chance de ver a estátua do bodhisattva com 1.000 braços. Cada braço segura um instrumento. Uma de suas mãos está segurando um livro, pode ser um sutra ou um livro de ciências políticas. Outra mão está segurando uma flauta ou um violão. E um bodhisattva de nosso tempo poderia segurar um computador. No livro de cânticos e recitações de Plum Village há a tradução em inglês dos versos deste capítulo feita pela irmã Chan Kong. Nessa tradução o bodhisattva é chamado de “ela”. Na Ásia muitas pessoas pensam em Avalokitesvara como feminina. Mas de fato a pessoa pode ser homem ou mulher como explicado no sutra. O bodhisattva pode se manifestar como um artista, um político, um músico, um professor de Dharma, um jardineiro, um pequeno menino e mesmo como um milionário, chefe de uma grande corporação. Se a situação pede sua presença, ela estará lá na forma apropriada para responder à situação. Compaixão pode tomar muitas formas.
Quem quer que chame seu nome
Ou veja sua imagem,
Se a mente é perfeitamente
Concentrada e pura,
Será capaz de superar
O sofrimento de todos os mundos
Quando aqueles com intenções cruéis
Nos empurram em um forno
Invocando a força de Avalokita
O fogo se torna um lago refrescante.
Chamando o nome de Avalokitesvara pode despertar algo em sua mente. Sua mente se torna concentrada, consciente, calma e lúcida. Se você chamar seu nome de tal modo que sua mente se torne parada então você será capaz de superar o seu sofrimento. Evocar o nome de Avalokitesvara é uma das maneiras para que o entendimento e compaixão nasçam no seu coração e você possa superar o sofrimento que está experimentando no momento.
Um lugar também pode incorporar compaixão e entendimento. Suponha que você venha a Plum Village e desfrute da beleza da natureza e do estilo de vida. Quando for embora, cada vez que pensar em Plum Village terá um sentimento agradável. Este é o significado de plena consciência ou contemplação. O objeto de plena consciência é a imagem ou som que nos inspira e produz os elementos de entendimento e compaixão em nós. Não é apenas devoção. Não deveríamos invocar o nome de Avalokitesvara ou visualizar uma forma como uma máquina. Ao fazer assim não provocaremos nenhuma calma ou plena consciência. Invocar a energia de Avalokitesvara é a prática de acalmar e concentrar nossa mente para trazer de volta o néctar da compaixão e entendimento em nós. Essa prática pode nos ajudar a evitar todos os tipos de perigo.
Avalokitesvara pode se manifestar também com muitos nomes. A mensagem de Jesus é amor. Jesus disse, “Eu sou o Caminho.” Avalokitesvara pode dizer, “Eu sou a Porta Universal.” Nós todos temos nosso Avalokitesvara, de diferentes nomes e formas. O que é essencial é que este nome ajude a nos acalmar e tornar entendimento e compaixão possíveis.
“Quando aqueles com intenções cruéis nos empurram em um forno, invocando a força de Avalokita o fogo se torna um lago refrescante.” Como podemos entender essa declaração? Se você for empurrado para um forno, mas sabe como ficar em plena consciência e lembrar a energia poderosa de Avalokitesvara então o forno será transformado em um lago fresco. O lago fresco está dentro e também está fora de nós.
No mesmo capítulo do Sutra do Lótus lemos, “Se há uma pessoa que é vítima da ignorância, mas sabe como estar consciente da grande compaixão de Avalokitesvara então ela se libertará da ignorância. Se uma pessoa é vítima da raiva e sabe como praticar a plena consciência da grande energia de Avalokitesvara então ela se libertará da raiva.” Temos que entender todos esses versos nesse espírito.
Às vezes toda a nação cai no forno feito de raiva. Imagine como deve ser grande esse forno. Se você sabe como estar em plena consciência da compaixão, e de Avalokitesvara que é o símbolo da compaixão e do entendimento, então você se acalma. Será capaz de ver mais claramente e sua raiva diminuirá. Depois de 11 de setembro, eu recomendei para os americanos que se engajassem na prática de parar, acalmar e olhar profundamente para ver o que fazer e o que não fazer para responder à situação com compaixão e lucidez. Esta é a ação de Avalokitesvara.
No capítulo da Porta Universal lemos sobre muitas situações perigosas tais como: ser capturado pelo fogo, por enchentes, por guerras, ou por uma situação onde soframos muito. Nós não percebemos que a maioria dos perigos que tememos vem de dentro de nós e não de alguma situação objetiva. Quando você não tem uma visão clara, um correto entendimento da realidade cria muito medo, desentendimento e perigo. Quando você tem o elemento raiva, desilusão e desejo no seu interior, coloca perigo para dentro de você. Cria seu próprio sofrimento. A prática da compaixão, a prática de olhar profundamente te ajuda a ser lúcido e esta lucidez, essa bondade amorosa é uma proteção para todos os tipos de perigo.
Está claramente declarado no sutra que se você for pego em uma situação de raiva e sabe como produzir plena consciência do amor, então se libertará dessa situação. Se for pego em uma situação de desilusão e sabe como praticar a plena consciência da compaixão então você sai da situação. Esta é a Porta Universal.
(Dharma Talk de Thich Nhat Hanh em 9 de Junho de 2002 em Plum Village)
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