Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Dois Jardins

 

Comprometer-se com outra pessoa é como embarcar numa jornada cheia de aventuras. Você precisa ser muito sábio e paciente para manter vivo o seu amor, para que ele possa durar por muito tempo. O primeiro ano de um relacionamento pode já revelar o quão difícil é comprometer-se. Quando de início se compromete com alguém, você tem uma linda imagem dessa pessoa, e você se casa com essa imagem mais do que com a pessoa. Quando vocês passam a viver um com o outro por vinte e quatro horas a cada dia, começam a descobrir a realidade da outra pessoa, que não exatamente corresponde à imagem que você tinha dela. Algumas vezes, ficamos desapontados.

 

No início, estamos muito apaixonados. Mas a paixão pela outra pessoa pode durar pouco tempo -- talvez seis meses,  um ou dois anos. Então, se você não for habilidoso, se você não praticar, se não for sábio, o sofrimento irá nascer em você e na outra pessoa.  Quando você olhar para uma outra pessoa, poderá pensar que seria mais feliz com ela. Em vietnamita temos um ditado: "De pé no topo de uma montanha e olhando para outra, você pensa que preferia estar lá ao invés de aqui".

 

Quando nos comprometemos com um parceiro, seja através de uma cerimônia de casamento ou em particular, geralmente é porque pensamos que podemos e queremos ser fiéis ao nosso parceiro pela vida inteira. Na tradição budista nós temos a prática dos Cinco Treinamentos da Plena Consciência, e o terceiro treinamento inclui ser fiel ao parceiro com quem nos comprometemos. Este é um desafio que requer uma prática forte e consistente. Muitos de nós não têm modelos de lealdade e fidelidade à nossa volta. Nos Estados Unidos, o índice de divórcio beira os 50%, e para aqueles que não se casam mas possuem alguma forma de comprometimento, o índice é similar.

 

Temos a tendência de nos compararmos com os outros e nos perguntamos se temos o suficiente a oferecer num relacionamento. Muitos de nós se sentem sem muito valor. Estamos sedentos por verdade, bondade, compaixão, beleza espiritual, e certos de que estas coisas não existem dentro de nós, vamos buscá-las fora. Às vezes pensamos que encontramos o parceiro ideal que corporifica tudo que é belo, bom e verdadeiro. Essa pessoa pode ser um parceiro romântico,  um amigo ou um mestre espiritual. Vemos tudo o que há de bom na pessoa e nos enamoramos. Depois de algum tempo, geralmente nós descobrimos que tínhamos uma percepção errônea daquela pessoa e ficamos desapontados.

 

Beleza e bondade existem sempre em cada um de nós. Este é o ensinamento básico do Buda. Um verdadeiro mestre, um verdadeiro parceiro espiritual, é alguém que nos encoraja a buscarmos em profundidade dentro de nós mesmos a beleza e o amor que estamos buscando. O verdadeiro mestre é aquele que te ajuda a descobrir o mestre em você mesmo.

 

De acordo com o Buda, o nascimento de um ser humano não é um começo mas sim uma continuação, e quando nascemos, todo tipo de diferentes sementes -- sementes de bondade, de crueldade, de iluminação -- já está presentes em nós. Se será a bondade ou a crueldade que irá se revelar, depende das sementes que cultivamos, de nossas ações e nosso modo de viver.

 

No momento de seu despertar ao pé da árvore Bodhi, o Buda declarou "Que estranho -- todos os seres possuem a capacidade do despertar, do entendimento, do amor, da liberação -- ainda assim, deixam-se ser carregados num oceano de sofrimento". Ele percebeu que, dia e noite, estamos buscando por aquilo que já existe em nós. Podemos chamá-la de natureza búdica, de natureza iluminada, ou de verdadeira liberação, que é a fundação para toda a paz e felicidade. A capacidade de nos iluminarmos não é algo que uma outra pessoa possa oferecer-nos. Um mestre pode apenas ajudar você a remover os elementos de não-iluminação que você tem, para que a iluminação possa se revelar. Se você tiver confiança na beleza, na bondade e no verdadeiro mestre dentro de você, e se você toma refúgio neles, você irá praticar de uma maneira que revele estas qualidade mais claramente, a cada dia.

 

Cada um de nós é soberano sobre o território de nosso próprio ser e os cinco elementos de que é feito. Estes elementos são forma (o corpo), sentimentos, percepções, formações mentais e consciência. Nossa prática consiste em olhar em profundidade estes cinco elementos e descobrir a verdadeira natureza do nosso ser -- a verdadeira natureza do nosso sofrimento, nossa felicidade, nossa paz, nosso destemor.

 

Mas ao abandonarmos nossos territórios não estaremos sendo governantes responsáveis. Não praticamos e, a cada dia, ao invés de cuidar do nosso território, fugimos dele e permitimos que surjam conflitos e desordem. Temos medo de retornar ao nosso território e encarar nossas dificuldades e sofrimento. Quando quer tenhamos quinze minutos livres, uma ou duas horas, temos o hábito de usar a televisão, jornais, música, conversas ou o telefone para esquecermos e fugirmos da realidade dos elementos que formam o nosso ser. Pensamos "Estou sofrendo demais, tenho muitos problemas. Não quero voltar a eles".

 

Temos de retornar ao nosso ser físico e colocar as coisas em ordem. O Buda nos deu práticas muito concretas que nos mostram como fazer isto. Ele disse claramente que para limparmos e transformarmos os elementos em nós, temos de cultivar a energia da plena consciência. É ela que nos dará forças para retornarmos as nós mesmos.

 

A energia da plena consciência é algo concreto que pode ser cultivado. Quando praticamos caminhar em plena consciência, nossos passos sólidos e pacíficos cultivam a energia da plena consciência e nos devolvem ao momento presente. Quando nos sentamos e seguimos a nossa respiração, conscientes da inspiração e da expiração,  estamos cultivando a energia da plena consciência. Quando comemos em plena consciência, colocamos todo o nosso ser no momento presente e estamos conscientes da comida e de todos aqueles que estão comendo conosco.  Podemos cultivar a energia da plena consciência enquanto caminhamos, enquanto respiramos, trabalhamos ou lavamos nossas roupas ou a louça. Uns poucos dias praticando assim podem aumentar sua energia da plena consciência, e essa energia irá auxiliar e proteger você, e dar a você coragem de retornar a si mesmo, para enxergar e acolher o que quer haja no seu território.

 

Há sentimentos dolorosos, emoções fortes e percepções problemáticas que nos tornam agitados e medrosos. Com a energia da plena consciência, podemos passar algum tempo em companhia desses sentimentos difíceis sem querermos fugir. Podemos acolhê-los da maneira como os pais acolhem um filho dizendo -- "querido, eu estou aqui para você; eu estou de volta; vou tomar conta de você." É assim que fazemos com todas as nossas emoções, sentimentos e percepções.

 

Quando começa a praticar Budismo, você começa sendo um Buda em tempo parcial e devagar você se torna um Buda em tempo integral. Às vezes você decai e volta a ser um Buda em tempo parcial, mas com uma prática constante,  torna-se um Buda em tempo integral novamente. A natureza búdica está ao seu alcance porque, assim como o Buda, você é um ser humano. Você pode se tornar um Buda quando quiser; o Buda está disponível no aqui e no agora, a qualquer hora, em qualquer lugar. Quando você é um Buda em tempo parcial, seu relacionamento romântico poderá ir bem durante parte do tempo. Mas se você for um Buda em tempo integral, encontrará uma maneira de estar sempre presente e feliz no seu relacionamento, mesmo quando surgem dificuldades.

 

Tornar-se um Buda não é tão difícil. O Buda é alguém que está iluminado, capaz de amar e perdoar. E você sabe que às vezes você é assim. Então desfrute de ser um Buda. Quando você se senta, permita ao Buda em você sentar-se. Quando caminhar, permita que o Buda em você caminhe. Desfrute da sua prática. Se você não se tornar um Buda, quem é que poderá se tornar?

 

Cada pessoa contém as sementes da bondade, gentileza e iluminação. Todos nós temos a semente da natureza búdica. Para dar ao Buda uma chance de se manifestar em você e nas pessoas a quem você ama, você tem de regar essas sementes. Quando nós agimos como se as pessoas tivessem essas sementes dentro delas, damos a elas e a nós mesmos a força e a energia que ajudam estas sementes a crescer e a florescer. Se agimos como se não acreditássemos em nossa bondade inerente, culpamos os outros por nosso sofrimento e perdemos a nossa felicidade.

 

Você pode usar a bondade que há em você mesmo para transformar o seu sofrimento e a tendência de ficar bravo, de ser cruel ou medroso. Mas você não quer se livrar do sofrimento, porque você pode utilizá-lo. O seu sofrimento é o adubo que dá a você compreensão para nutrir sua própria felicidade e a felicidade do seu amado.

 

Você tem dois jardins: o seu próprio e o da pessoa a quem você ama. Primeiro, você tem de cuidar do seu próprio jardim e se tornar um mestre na arte da jardinagem. Em cada um de nós, há flores e há também lixo. O lixo é a raiva, o medo, a discriminação e o ciúme em nós. Se você regar o lixo, irá fortalecer as sementes negativas.  Se você regar as flores da compaixão, da compreensão e do amor, irá fortalecer as sementes positivas. O que você faz crescer é por sua própria conta.

 

Se você não souber como praticar a rega seletiva em seu próprio jardim, não terá sabedoria suficiente para ajudar a regar as flores no jardim da pessoa que você ama. Ao cultivar bem o seu jardim, você também está ajudando a outra pessoa a cultivar o dela. Mesmo uma semana de prática pode fazer uma grande diferença. E você é mais do que inteligente para dar conta desse trabalho. Você precisa tomar a situação em suas próprias mãos e não permitir que fuja do controle. Você pode fazê-lo. A cada vez que pratica andar em plena consciência, colocando sua mente e seu corpo em cada passo, você está tomando a situação em suas próprias mãos. A cada vez que inspira sabendo que está inspirando e a cada vez que expira sabendo que está expirando, você é você mesmo, você é seu próprio mestre, e você é o jardineiro em seu próprio jardim. Confiamos em você para cuidar bem do seu próprio jardim, para que possa ajudar a pessoa a quem você ama a cuidar do dela.

 

Quando obtém sucesso consigo mesmo e com a pessoa que você ama, vocês se tornam uma Sangha -- uma comunidade de prática -- e agora vocês podem se tornar refúgio para uma terceira pessoa, e depois para uma quarta, e assim por diante. Desta maneira, a Sangha irá crescer. Há compreensão mútua, entre você e a pessoa a quem você ama.  Quando há compreensão mútua e a comunicação é boa, a felicidade se torna possível, e vocês dois podem ser um refúgio para os outros.

 

Se você tem um relacionamento difícil, e você quer fazer as pazes com a outra pessoa, tem antes de voltar ao lar em si próprio. Você tem de se voltar para o seu próprio jardim e cultivar as flores da paz, da compaixão, da compreensão e da alegria. Somente depois disso você irá até seu parceiro, paciente e compassivo.

 

Quando nos casamos ou nos comprometemos com uma outra pessoa, prometemos crescer juntos, compartilhando os frutos e o progresso da nossa prática. É nossa responsabilidade cuidarmos um do outro. Cada vez que a outra pessoa faz algo na direção da mudança e do crescimento, nós deveríamos mostrar nossa apreciação.

 

Se você está com o seu parceiro há alguns anos, pode ter a impressão de que já sabe tudo sobre essa pessoa, mas não é verdade. Os cientistas podem estudar uma partícula de poeira por anos e ainda assim eles não se arvoram entender tudo sobre ela.  Se um grão de poeira é assim complexo, como é que você pode saber tudo sobre uma outra pessoa? Seu parceiro precisa da sua atenção e de que você regue as sementes positivas dele. Sem essa atenção, a relação irá enfraquecer.

 

Precisamos aprender a arte de criar felicidade. Se, durante a sua infância, você viu seus pais fazendo coisas que criavam felicidade na família, você já sabe como fazer isso. Mas muitos de nós não tiveram esses modelos, e não sabemos como fazê-lo. O problema não é estar certo ou errado, nem ser mais ou menos habilidoso. Viver juntos é uma arte. Mesmo com muita boa vontade, ainda assim você pode fazer a outra pessoa muito infeliz. A substância da arte de fazer os outros felizes é a plena consciência. Quando você tem mais plena consciência, você tem mais habilidades nessa arte.

 

Você e seu parceiro tem cada qual um jardim para regar, mas esses jardins estão conectados. Nós possuímos duas mãos e damos a elas os nomes de direita e de esquerda. Alguém já viu as duas mãos brigando entre si? Eu nunca vi.  Toda vez que machuco um dedo, observo que minha mão direita vem naturalmente auxiliar minha mão esquerda. Portanto deve existir algo assim como amor, no corpo. Algumas vezes elas ajudam uma à outra, algumas vezes agem em separado, mas elas nunca brigam.

 

Minha mão direita convida o sino, escreve livros, faz caligrafias e serve chá. Mas minha mão direita não parece orgulhosa de si mesmo. Não despreza a mão esquerda dizendo "Ah, mão esquerda, você serve para nada.  Todos os poemas foram escritos por mim. Todas as caligrafias, em Alemão, Francês e Inglês, foram feitas por mim. Você é imprestável, não serve para nada. " A mão direita nunca teve complexo de superioridade. E a mão esquerda nunca sofreu de complexo de inferioridade.  Isso é maravilhoso.

 

Quando a mão direita tem um problema, a esquerda vem ajudá-la imediatamente. A mão direita nunca diz "Isso mesmo, você tem de me retribuir. Eu sempre faço tudo. Você me deve isso."

 

Quando você consegue enxergar que seu parceiro não é um ser separado de você, nem melhor nem pior nem igual a você, então você tem a sabedoria da não-discriminação. Enxergamos a felicidade dos outros como sendo a nossa própria felicidade. E o sofrimento deles é nosso.

 

Olhe a sua mão. Os dedos são como cinco irmãos e irmãs de uma mesma família. Vamos supor que somos uma família de cinco. Se você se lembrar que todos sofremos quando uma pessoa sofre, você tem a sabedoria da não-discriminação. Se a outra pessoa está feliz, você também está. A felicidade não é assunto individual.

 

O nosso objetivo ao praticarmos a plena consciência, e o maior benefício que pode nos trazer, é a sabedoria da não-discriminação. Não somos nobres por nascimento. Nós nos tornamos nobres pela virtude em nossos pensamentos, fala e ações. A pessoa que pratica o verdadeiro amor possui a sabedoria da não-discriminação, e isso dá forma a todas as suas ações. Ela não discrimina entre si mesma e seu parceiro, ou entre seu parceiro e todas as pessoas. O coração desta pessoa cresceu e tornou-se grande, e seu amor não conhece obstáculos.

 

(introdução de Thich Nhat Hanh ao livro "Love's Garden" de Peggy Rowe Ward e Larry Ward, Parallax Press)

(Traduzido por Marcelo F. de Abreu/ Chân Mật Đăng (Verdadeira Luz Esotérica))

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