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Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

David e Angelina: A Energia Habitual da Raiva

 

Era uma vez um jovem chamado David. Ele era muito bonito e bastante inteligente. Nascera numa família rica e tinha tudo de que precisava para ser bem-sucedido. Mas ele não conseguia ser feliz. Tinha muitos problemas com os pais, os irmãos, as irmãs, e não sabia se comunicar. Como era muito egoísta, sempre culpava o pai, a mãe e os irmãos pela sua infelicidade. Era infeliz por não ser capaz de sentir amor e compreensão. Conseguia fazer amigos por alguns dias, mas logo eles o deixavam, porque era muito difícil conviver com ele. Era um jovem muito arrogante, extremamente egocêntrico, sem nenhuma compreensão e compaixão.

 

Certo dia, ele foi a um templo budista com a intenção de fazer novos amigos, porque a vida sem nenhum amigo se tornara um inferno. Quando chegou ao templo, passou por um grupo de pessoas que estavam saindo e viu entre elas uma linda moça. A imagem dela o tocou profundamente e ele se apaixonou à primeira vista. Voltou-se então para seguir o grupo, mas, quando conseguiu sair do templo, a bela moça tinha desaparecido.

 

Depois de procurar por toda parte, ele voltou para casa com aquela linda imagem no coração. Não conseguiu dormir naquela noite nem na noite seguinte. Na terceira noite, viu em sonho um bonito velho de barba branca, que lhe disse: "Se você quiser encontrá-la, vá ao mercado oriental hoje." Ao meio-dia ele saiu para procurar a jovem.

 

Não havia muitas pessoas no mercado oriental quando o jovem chegou. Ele entrou então numa livraria e, ao olhar em volta, viu o quadro de uma bela jovem pendurado na parede. Era a mesma moça que ele vira três dias antes no templo. O velho dissera no sonho que ele encontraria a jovem no mercado, mas talvez ele estivesse se referindo ao quadro. "Pode ser que eu só mereça uma imagem", pensou David. "Eu não mereço a realidade." Assim, ele gastou todo o dinheiro que tinha comprando o quadro. Pendurou-o depois na parede do seu quarto na universidade.

 

David era uma pessoa solitária. Muitas vezes, em vez de ir ao restaurante do campus, ele ficava no quarto e comia macarrão instantâneo. Naquele dia, ele preparou duas tigelas de macarrão e pegou dois pares de pauzinhos. A segunda tigela era para a moça do quadro. Ele comeu o macarrão, olhando de vez em quando para a pintura e convidando a jovem para comer também.

 

Sabemos que existem pessoas que não conseguem se comunicar com seres humanos. Elas têm um gato ou um cachorro para poder derramar sobre eles o amor e o carinho que guardam dentro de si. Muitas acham mais fácil amar um gato ou um cachorro porque eles nunca discordam, e, se elas dizem alguma coisa desagradável, eles não reagem. O mesmo acontecia com David. Ele conseguia viver em paz com a moça do quadro, mas, se a verdadeira jovem estivesse presente, talvez ele não fosse capaz ele viver com ela por mais de vinte e quatro horas.

 

Certo dia, ele não conseguiu comer todo o macarrão. A vida parecia não ter nenhuma graça e ele chegara ao seu limite. Naquele momento, olhou para o quadro, perguntando-se: "Para que serve viver?", e viu a moça piscar os olhos e sorrir. Ele achou que estava sonhando. Esfregou os olhos, olhou de novo para o quadro e a moça estava absolutamente imóvel. Alguns dias depois, ele viu a jovem sorrir e piscar os olhos de novo. Extremamente surpreso, ele continuou a olhar para ela e, de repente, a moça se transformou numa pessoa de verdade e saiu do quadro. O nome dela era Angelina, porque ela vinha do céu. É impossível descrever a felicidade de David. Ele estava no paraíso. O que poderia ser mais maravilhoso do que ter como amiga uma moça tão bonita?

 

Talvez você já tenha adivinhado o resto da história. Ele não conseguiu ser feliz nem com uma pessoa tão pura e doce como Angelina, e três ou quatro meses depois ela o abandonou. Certa manhã, ele acordou e encontrou um bilhete onde estava escrito: "David, é impossível viver com você. Você é egocêntrico demais, não tem capacidade de ouvir ninguém. Você é inteligente, bonito e rico, mas não sabe manter um relacionamento com outro ser humano." Naquela manhã, David teve vontade de se matar. Achou que, se não conseguia viver com uma moça tão doce e bonita, não devia valer mesmo nada. Procurou então uma corda para se enforcar.

 

Enquanto David estava dando um nó na corda, ele se lembrou que certa vez Angelina tinha sorrido e dito: "David, se um dia eu não estiver mais por perto e você sentir muitas saudades de mim, acenda um incenso." Naquele dia, ela conseguira convencê-lo a acompanhá-la ao templo para ouvir uma palestra sobre o dharma. Lá, o monge explicou como comunicar-se oferecendo incenso. Quando queimamos incenso, queremos nos comunicar com o Buda, com o Bodisatva, com nossos ancestrais. Se conseguimos nos comunicar com nossos antepassados, também podemos nos comunicar com nossos irmãos e irmãs que estão à nossa volta. O monge disse que o incenso que oferecemos deve ser o incenso do nosso coração: o incenso da plena consciência, o incenso da concentração, o incenso da sabedoria, o incenso da compreensão. David, sentado ao lado de Angelina, não prestava muita atenção. No entanto, ele ouviu o suficiente para se lembrar do evento. Quando os dois deixaram o templo, Angelina disse: "David, se algum dia você quiser entrar em contato comigo, ofereça um incenso."

 

Ao se lembrar das palavras dela, ele largou a corda, correu para a loja mais próxima e comprou um feixe de incenso. David acendeu o feixe todo e, em poucos minutos, o quarto estava cheio de fumaça. Esperou quinze minutos meia hora, uma hora, mas Angelina não apareceu. Ele se lembrou então do que o monge dissera: "Para que a verdadeira comunicação seja possível, vocês têm que oferecer o incenso do coração, ou seja, o incenso da plena consciência. O incenso da concentração, o incenso da compreensão." Queimar o incenso sem estar plenamente consciente não daria certo.

 

David ficou sentado e, pela primeira vez, refletiu profundamente sobre sua situação. Percebeu que fracassara com todos, até com Angelina, e começou a ver que sempre culpara as outras pessoas pelo seu sofrimento. Esta foi a primeira vez em que ele percebeu que tinha sido injusto com os pais e que era responsável pela falta de comunicação.

 

Pela primeira vez, lágrimas correram pelo seu rosto e ele realmente se arrependeu da maneira como havia tratado os pais, irmãos, irmãs e amigos. Lembrou-se do dia em que chegara tarde da noite em casa, bêbado, batera em Angelina e a violentara. Ele pensou em tudo isso e, de repente, uma gota de compaixão penetrou em seu coração repleto de sofrimento e aflição. Quanto mais ele chorava, mais seu coração se renovava. Uma transformação teve lugar dentro dele. Ele começou a entender o que Angelina tinha tentado lhe dizer a respeito da prática de ouvir profundamente e usar palavras amorosas. Sentiu vontade de recomeçar e disse para si mesmo que, se Angelina voltasse, ele seria uma pessoa diferente. "Saberei tomar conta dela e tornar possível a felicidade." Naquele momento, ouviu baterem na porta. Angelina estava de volta. Embora David mal tivesse praticado durante uma hora, sua transformação foi profunda.

 

Não pense você que David é apenas um personagem de uma história, uma pessoa do passado. Não. David ainda está vivo e se encontra entre nós. Angelina também. Todos nós conhecemos pessoas iguais a eles, ou com algum aspecto deles. David sempre culpava os outros pela sua infelicidade. Ele fazia sofrer as pessoas mais próximas. Apesar de não querer que elas fossem infelizes, o hábito era tão forte, que ele não conseguia evitar suas atitudes. Como todos nós, ansiava pela compreensão de outro ser humano, alguém que pudesse ficar ao seu lado, que o entendesse e ajudasse nas dificuldades da vida.

 

Assim, não é difícil entender David. Compreendemos seu desejo mais profundo, entendemos suas dificuldades. Um dia, Angelina entrou em sua vida. De vez em quando, uma sorte dessas nos acontece: uma pessoa muito agradável passa a fazer parte da nossa vida e, se soubermos cuidar dela, nossa vida adquire mais significado. Mas, se não soubermos tomar conta de nós mesmos e da energia que existe em nossos hábitos não saberemos cuidar da nossa Angelina. É por esse motivo que as Angelinas nos deixam, por sofrerem muito com o nosso comportamento.

 

Angelina é talentosa. Ela sabe como fazer uma pessoa feliz. Mas quando não reconhecemos isso, quando não a escutamos nem procuramos compreendê-la, ela vai embora. Talvez você seja Angelina e saiba como foi difícil viver com seu David, embora você tenha feito o melhor que pôde para ajudá-lo. Ele não foi capaz de reconhecer o que você tinha de bom para oferecer, pois a energia habitual dele o forçou a continuar vivendo e consumindo de um jeito que envenenava seu corpo e sua mente. Talvez ele tenha se embebedado todas as noites e, por mais que você implorasse, não conseguia parar de beber. Por mais que você tentasse ser doce e paciente, ele sempre a interrompia, não permitindo que você terminasse a frase. Ele nunca foi capaz de ouvir você. Você foi paciente, mas tem seus limites. A comunicação era impossível, de modo que você desistiu.

 

Quem é David e quem é Angelina? Eu gostaria que você respondesse a essa pergunta. Você é David? Então, onde está agora sua Angelina? Ela ainda está com você ou o deixou? O que você fez a ela? Como a tratou? Você cuidou bem dela? Foi capaz de fazê-la feliz? Temos que fazer a nós mesmos essas perguntas, pois elas são muito importantes e nos ajudam a realizar um exame profundo.

 

Esta é uma verdadeira meditação. David pode ser seu parceiro. Angelina pode ser sua parceira. Angelina pode ser homem ou mulher. David também. Angelina entrou na sua vida. No início, você se sentia muito feliz ao lado dela, adorava a presença dela. Achava que não poderia viver sem ela. Mas rapidamente você deixou de sentir que Angelina era o presente da vida para você. Você a fez sofrer tanto, que ela o abandonou. Certa ocasião, ela pediu que você usasse palavras amorosas, ouvisse profundamente, se associasse a pessoas boas e não àquelas que regavam as sementes negativas dentro de você. Mas você nunca a ouviu. Você continuou com seu modo de vida, pressionado pela energia do hábito, e por esse motivo ela teve que ir embora.

 

Sua Angelina pode ser um dos seus filhos. Eles entraram na sua vida. Como você os tratou? Você é capaz de viver com seus filhos em paz, com amor e harmonia? Ou você está tendo dificuldades com sua Angelina? Talvez sua Angelina tenha ido embora de casa. Na história, David estava prestes a cometer suicídio depois da partida de Angelina. Mas aí ele se lembrou da palestra que ouvira sobre a prática da comunicação através do incenso e, de repente, o desespero se transformou em esperança. Ele acreditou que, se oferecesse o incenso da plena consciência, Angelina voltaria para ele. Ele teve a oportunidade de parar, pensar e examinar a vida que levara até então.

 

Nosso cotidiano é muito corrido e atarefado. Não temos capacidade nem oportunidade de parar e fazer um exame profundo da nossa vida. Precisamos olhar para trás e fazer uma análise profunda para poder compreender o que está acontecendo. David ficou sentado durante quarenta e cinco minutos no quarto, examinando sua vida. Ele alcançou um grande entendimento e lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto. Ele chorou pela primeira vez na vida porque reconheceu a energia do hábito que o movia e o dano que havia causado às pessoas que o cercavam: os pais, os amigos, os irmãos e ele próprio.

 

Precisamos praticar diariamente a meditação, mas será que estamos convencidos disso? Na meditação, você precisa ver como as coisas se deterioraram entre você e Angelina: como você a tratou, como a fez sofrer e por que ela o deixou. A compreensão que você conquistar lhe dirá exatamente o que fazer e o que não fazer. É possível oferecer o incenso do coração e chamar de volta sua Angelina. Angelina está sempre presente. O amor ainda ocupa o coração dela. Ela está pronta para perdoar, se você souber queimar o incenso do coração, o incenso da plena consciência, da concentração e do entendimento.

 

Talvez você seja uma pessoa de sorte, porque mais de uma Angelina entrou na sua vida. Seu parceiro, seu filho, sua filha, seu pai, sua mãe, alguns amigos são suas Angelinas. Chame essas várias Angelinas pelo nome. Não diga que nenhuma Angelina surgiu na sua vida. Isso não é verdade. Sente-se conscientemente e chame em silêncio o nome da pessoa: "Minha Angelina, sinto muito. Você entrou na minha vida e eu fiz você sofrer. Ao mesmo tempo, também causei sofrimento a mim mesmo. Eu não tinha essa intenção. Eu fui inábil. Eu não sabia como me proteger e proteger você, através da prática da plena consciência. Quero recomeçar." Se você realmente praticar dessa maneira, Angelina voltará para você.

 

Eu também sou um David. Há muitas Angelinas na minha vida. Na minha pequena sala de meditação, tenho uma foto de cerca de cem das minhas Angelinas - são meus alunos e alunas que residem nos nossos centros de prática na França e nos Estados Unidos. Antes de praticar a meditação sentada, eu sempre olho para a foto e faço uma reverência para todas as minhas Angelinas. Em seguida, eu me sento e prometo viver de uma maneira que fará com que minhas Angelinas nunca me deixem. Prometo praticar a linguagem consciente, os treinamentos da plena consciência e não trair minhas Angelinas. Ao fazer isso, evito causar sofrimento a elas e sou capaz de torná-las felizes. Isso me deixa muito alegre.

 

(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva” - Thich Nhat Than)

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