Sangha
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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
Escutar Profundamente
Hoje, começamos a aprender sobre um método de como escutar profundamente. Como já sabemos, temos que praticar antes que possamos escutar profundamente. Podemos traduzir "escutando profundamente" também como "escutando compassivamente", quer dizer, escutar com compaixão, ou escutar com carinho. Ouvimos com um só objetivo; não escutamos para criticar, culpar, corrigir a pessoa que está falando ou condená-la. Só escutamos com um objetivo, e este é aliviar o sofrimento daquele a quem estamos escutando. Temos que nos sentar quietos, temos que nos sentar com liberdade interior, e temos que estar cem por cento presentes, corpo e mente, e escutar de modo que o outro ou a outra possa aliviar seu sofrimento. Se a outra pessoa diz coisas que não são certas, que são percepções erradas, podemos ter o desejo de responder, dizer, "Isso está errado!" e discutir com ela. Mas não devemos fazer isso - temos que nos sentar e escutar. Se pudermos nos sentar durante uma hora, esta será uma hora de ouro. Aquela hora será uma hora que pode curar e transformar.
Podemos fazer muito melhor do que vários psicoterapeutas, porque há psicoterapeutas que não aprenderam a escutar profundamente, que não aprenderam a escutar com compaixão. Psicoterapeutas têm seus próprios sofrimentos, talvez muitos sofrimentos, de forma que a sua capacidade de escutar profundamente pode não ser muito grande. Não sabemos muito sobre as teorias de psicoterapia, mas praticamos o parar e olhar profundamente, praticamos o escutar profundamente, e portanto podemos fazer melhor que alguns psicoterapeutas. Nós usamos o método de escutar profundamente, em primeiro lugar para nossos entes queridos e nossa família, e uma vez que tivermos êxito com nossa família, podemos ajudar nossos amigos. Podemos escutar profundamente de forma que o mundo sofra menos; isso é nossa prática. Claro que psicoterapeutas têm que aprender a escutar profundamente de acordo com a prática para que sejam psicoterapeutas realmente bons.
Quando podemos escutar profundamente, e quando soubermos falar amorosamente também, isso terá a função de reavivar a comunicação entre duas pessoas. De fato, quando sabemos escutar profundamente, já falaremos amorosamente. Em nosso tempo, a tecnologia de comunicação é muito grande. Temos todos os tipos de meios de comunicação, como e-mail, fax e telefone, e assim podemos estar muito depressa em contato com o outro, e num par de horas notícias podem ser levadas de um extremo do mundo ao outro. Mas, há obstrução na comunicação entre pessoas de uma família, entre o pai e filho, entre a esposa e marido. Então, é muito importante para nós aprendermos a escutar profundamente.
A razão por que o marido e a esposa se fazem sofrer é que eles não entendem um ao outro, não sabem escutar profundamente um ao outro. Eles não têm a capacidade de usar a fala amorosa. Eles não sabem que enquanto estão fazendo um ao outro sofrer, também estão fazendo seus filhos sofrerem. E quem são seus filhos? Eles são a sua continuação. Para dizer isto de outro modo, eles são nós mesmos. Quando nos fazemos sofrer, quando fazemos nosso marido ou nossa esposa sofrer, também estamos fazendo nossos filhos sofrerem. Eles também farão nossos netos sofrerem, porque não temos a capacidade de mostrar-lhes a arte de criar felicidade, ou a arte de fazer nossos cônjuges felizes. E com quem nossos filhos podem aprender isso, se não podem aprender isto conosco? Se não aprenderem isto, crescerão e cometerão os mesmos enganos que nós cometemos, e este ciclo de Samsara continuará neles; e nosso sofrimento será passado para nossos filhos, e o seu sofrimento será passado para nossos netos, e este ciclo de Samsara nunca se acabará. Nós temos que pôr um fim neste ciclo pelo método de escutar profundamente e usar a fala amorosa. Usar a fala amorosa e escutar profundamente estabelecerão a comunicação, e quando há comunicação e entendimento entre nós, então a felicidade estará lá.
Talvez em tempos anteriores a mãe e o pai sorrissem um para o outro. Naquele tempo quando se conheceram pela primeira vez, quando se apaixonaram, e não percebiam que aquela pessoa iria viver com eles para o resto das suas vidas. Assim quando um casal toma a decisão, de um modo superficial, de viver junto para o resto de suas vidas, e estes dois corpos efetivamente vem a viver juntos, mas suas almas não estão em harmonia, não há nenhuma comunicação, não há entendimento, não há o compartilhar das coisas profundas de suas almas, então não há nenhum contato. Se somos jovens, sabemos que em tempos anteriores nosso pai também era jovem, nossa mãe também era jovem, e nos primeiros momentos, quando se juntaram, não compartilhavam ainda as coisas mais profundas dos seus corações, e então eles cometeram um engano. Isso iniciou seu sofrimento para o resto das suas vidas. Nós vemos que como crianças estamos continuando aquele sofrimento, e se não formos hábeis, se não formos inteligentes, repetiremos os enganos que nossas mães e pais cometeram, especialmente quando nos apegamos, e nos apaixonamos, e fazemos um compromisso de ficar com a outra pessoa. Nós não queremos fazer como nossa mãe e nosso pai, mas no fim nós faremos como nossa mãe e nosso pai, e faremos nosso companheiro sofrer, e daremos à luz a crianças que também sofrerão, e isso é chamado Samsara.
Uma pessoa é feita de corpo e mente. Se há só comunicação entre os corpos, mas não entre as almas, isto é muito perigoso. Quando amamos um ao outro, queremos estar perto um do outro, mas esta proximidade é uma proximidade de almas onde existe comunicação, onde existe entendimento, onde podemos compartilhar juntos valores espirituais? Se for assim a união dos dois corpos terá sentido e trará felicidade. Mas se dois corpos estão juntos sem uma união das almas, então haverá sofrimento, e nós não poderemos falar para nossos filhos sobre o significado do real amor. Então nós podemos chamar tal união de dois corpos de "sexo vazio".
Quando crianças de doze ou treze anos, ou de quatorze anos, ficam juntas, e dormem juntas, o que acontecerá? Há a união dos dois corpos, empurrados através do desejo sexual, mas as duas crianças não entendem uma a outra, não sabem nada sobre a outra, não sabem o que é o amor. Isso é o que nós chamamos sexo vazio, e é muito perigoso, porque então esses dois jovens entrarão profundamente no caminho do desejo sexual onde nada mais existe além do sexo, nenhuma compreensão. Isto é ensinado muito claramente na tradição asiática, e eu penso que isto também foi dito em tempos antigos na tradição Ocidental.
Na tradição asiática, nossos corpos também são sagrados, como nossas almas, e nós não podemos compartilhar nossos corpos com qualquer pessoa. Em nossos corpos existem partes que são muito sagradas, como o topo de nossa cabeça, por exemplo. Normalmente um pai e mãe no Vietnan, quando seus filhos ficam à sua frente na idade de três ou quatro anos, perguntarão para elas: "Meu filho, você ama seus pais?" e a criança dirá, "eu a amo Mamãe, eu o amo Papai". Os pais perguntam, "Onde você põe seu amor por seus pais?" e a criança diz "eu pus meu amor por meus pais em minha cabeça”. O topo da cabeça, no que diz respeito ao povo asiático, especialmente os vietnamitas, é o altar; e naquele altar nós colocamos a coisa mais sagrada. Por exemplo, se entrarmos em uma casa no Vietnan, mesmo se aquela casa for muito pobre, sempre haverá um altar ancestral. Aquele altar ancestral é muito sagrado. Naquela mesa talvez seja colocado apenas um prato de frutas ou um vaso de flores, ou um pouco de incenso. Nós não vamos ao mercado e então colocamos a bolsa de compras em cima da mesa do altar ancestral quando voltamos para casa. Isso seria uma grande irreverência, e ninguém jamais faria isso.
No que diz respeito ao nosso corpo, o seu altar é o topo de nossa cabeça, e nós adoramos o Buda, adoramos os antepassados no topo de nossa cabeça. No que diz respeito a um vietnamita, se alguém põe a mão em nossa cabeça, seria muito irreverente. Há ocidentais que não entendem isto, e eles põem suas mãos em nossa cabeça, mas temos vontade de lhes dizer, "Por favor, ponha sua mão em meu ombro, mas não em minha cabeça. Caso contrário eu me sentirei muito ofendido, eu acho isso muito ofensivo". (...)
Além do topo de nossas cabeças, há outras partes sagradas de nosso corpo. Há outras partes de nosso corpo que nós não queremos que ninguém veja, que não queremos que ninguém toque. Isto é verdade para uma menina, e é verdade para um menino. Nosso corpo é sagrado, como nossa alma. Em nossa alma, há áreas sagradas que não queremos que ninguém veja ou toque. Há experiências, há imagens que queremos manter escondidas para nós mesmos. Nós não queremos compartilhá-las com qualquer pessoa -- só quando aquela pessoa for alguém em quem temos a maior confiança do mundo, a quem mais amarmos no mundo. Então tiraremos essas coisas das profundidades de nossos corações e as mostraremos para ela. Mas o número de pessoas neste mundo com quem nós podemos compartilhar estas coisas é muito pequeno, provavelmente único. Há áreas em nossa alma que são áreas proibidas, assim como na cidade imperial onde existem lugares proibidos que vocês não podem entrar. Se vocês entrarem serão presos, e terão sua cabeça decepada! Com nossa alma é o mesmo, com nosso corpo é o mesmo. Há áreas secretas que são muito sagradas, e nós não podemos permitir a qualquer um entrar. Nós podemos segurar alguém nas mãos, podemos pôr nossa mão nos ombros de alguém, mas tocar estas áreas sagradas, estas áreas secretas de nossos corpos, é algo que não deveríamos fazer, e isso inclui o topo de nossas cabeças.
Somente quando temos alguém que realmente nos entende, que realmente nos ama, que viverá conosco até a morte, seremos capazes de compartilhar essas áreas profundamente escondidas de nossos corpos e nossas almas. Então a união de dois corpos será como uma cerimônia muito sagrada. Esta união de dois corpos é ao mesmo tempo a união de duas almas, e criará a felicidade. Em tempos antigos isto era muito claro entre os Orientais, e eu estou certo de que na tradição Ocidental também existia tal concepção, mas se perdeu para muitos de nós; olhamos para nossos corpos, olhamos para nossas almas, e não vemos sua sacralidade. Nós não cuidamos de nossos corpos e almas na hora de nos unirmos a outro corpo. Quando crianças de treze e quatorze fazem sexo, é algo muito perigoso. Elas não sabem o que é o amor, não sabem o que é o corpo, não sabem o que é a alma. Se elas agirem assim, no futuro não terão a oportunidade de saber o que é o real amor, o que é a real comunicação. É como uma fruta que não está madura ainda; é uma flor, que não desabrochou ainda. Então, nós temos que proteger nossos jovens. (...)
Nos anos 1930 e 1940 havia um jovem poeta que escrevia apenas poesia de amor, e um dia ele escreveu um poema que dizia:
Você Ainda Está Muito longe
Um dia você estava sentada longe de mim.
Eu lhe pedi para vir e se sentar perto de mim.
Você aproximou-se um pouco mais, e eu fiquei irritado.
Você apenas aproximava-se um pouco mais todo o tempo.
Eu estava a ponto de ficar com raiva.
Você depressa se levantou
Veio e se sentou perto de mim.
Lá estava você. Eu estava contente.
Mas logo fiquei triste novamente,
Porque vi que nós ainda estávamos muito longe um do outro:
Sentados muito próximos, ainda muito longe.
Por que longe? Nós estávamos sentados próximos um do outro,
Nossos corpos estavam extremamente próximos um do outro.
Por que estávamos distantes?
Porque ainda não havia nenhuma comunicação entre nossas almas.
Os dois universos ainda estavam separados e distantes.
Estas duas pessoas jovens, embora durmam juntas, ainda estão distantes. Elas não podem retirar a parede que os está dividindo. Quando dormimos com uma pessoa, podemos sentir que porque estamos perto dela, há comunicação; mas isso é uma ilusão. A união de dois corpos podem provocar maior separação que antes. Muitas pessoas testemunharam que se não há entendimento, comunicação, real amor, o profundo compartilhar de nossos ideais e nossa vida, e ainda assim unimos nossos corpos e fazemos sexo, então não só não haverá nenhuma comunicação naquele momento, mas um enorme abismo pode ser cavado entre nós, e isso é muito perigoso.
(Discussão de Dharma ministrada por Thich Nhat Hanh em Plum Village em 9 de julho de 1998)
(Transcrito e editado por Carol Fegan, Chan An Cu, Traduzido ao Português por Claudio Miklos)
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