Sangha
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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
Fazendo as pazes com um gomo de tangerina
Eu tenho um grande amigo nos Estados Unidos chamado Jim Forest. Conheci-o há vários anos atrás quando ele trabalhava para a Sociedade Católica em favor da Paz. Em protesto contra a guerra, Jim queimou seu certificado de alistamento militar, tendo com isso passado mais de um ano na prisão. Sabendo o quanto ele era engajado e ativo preocupei-me ao saber que tinha sido preso, temendo que ele não fosse capaz de enfrentar as quatro paredes da prisão.
Escrevi-lhe então uma curta mensagem na qual lembrava-lhe sobre uma tangerina que tínhamos partilhado uma ocasião. "Estar na prisão é como o caso daquela tangerina", escrevi. "Sorva-a e seja uno com ela. Amanhã ela não mais existirá". Não me surpreendi ao saber muito mais tarde que minhas palavras tinham tido efeito.
Três anos depois ele escreveu: "Suas palavras me ajudaram mais do que você pode imaginar. Fui capaz de encontrar paz e motivos de alegria na prisão. Eu fiz as pazes com a prisão e passei alguns dias muito proveitosos ali". Jim foi capaz de encontrar liberdade dentro da prisão e apreciar seu tempo e sua vida lá mesmo. Eu diria que ele se saiu muito bem.
No último verão Jim veio me visitar. Após o jantar, eu costumo lavar a louça antes de sentar-me para tomar chá com as visitas. Uma noite Jim perguntou se podia lavar a louça. "Claro", disse-lhe eu, "mas se quiser lavá-la convém saber como se faz". Jim respondeu de pronto: "Que é isso, você acha que eu não sei lavar louça?" Disse-lhe então: "Há duas formas de fazê-lo. A primeira é lavar para se ver livre da louça suja. A segunda é lavá-la por lavá-la".
Jim afirmou alegremente: "Escolho a segunda forma, lavar por lavar". Desde então ele aprendeu como se faz. Passei-lhe a "responsabilidade" do assunto por uma semana inteira. Depois disso ele fazia bastante alarde sobre lavar louça por lavar, escrevendo sobre o assunto em vários jornais. Em sua casa, Laura, sua esposa, divertindo-se, disse-lhe um dia: "Se realmente gosta tanto de lavar louça por lavar, por que você não lava a que está limpo no guarda-louça?"
Há trinta anos atrás, quando eu ainda era noviço m Tu Hieu Pagoda, lavar louça estava longe de ser uma tarefa desagradável. Quando os monges retornavam ao mosteiro para o período de retiro, apenas dois noviços eram encarregados de fazer comida e lavar a louça, às vezes para mais de cem monges. Não havia sabão. Tudo com que contávamos eram cinzas, cascas de arroz e de coco. Limpar tamanha pilha de pratos e panelas não era fácil, especialmente durante o inverno quando a água era gelada. Antes de começar a esfregar as panelas tínhamos que aquecer um enorme tacho de água.
Hoje em dia conta-se com cozinha equipada com sabão líquido, esponjas especiais, e até com água quente corrente, o que torna esse trabalho bem mais agradável. É mais fácil divertir-se lavando louça atualmente. Qualquer um faz isso em pouco tempo, podendo em seguida sentar-se para saborear uma boa xícara de chá. Sei mesmo de muitas pessoas que possuem máquina de lavar louça.
Segundo o Sutra da Mente Desperta enquanto se lava a louça, deve-se somente lavar a louça, o que quer dizer: enquanto se está lavando louça, deve-se estar totalmente cônscio do fato de que se está lavando louça. A princípio pode parecer uma tolice: “por que dar tanta importância a uma coisa tão simples? Mas a questão é justamente essa. O fato de eu estar nesse lugar, lavando essa louça, é uma realidade maravilhosa. Eu aí estou totalmente cônscio de mim, acompanhando minha respiração, sentindo minha presença, observando meus pensamentos e ações. Não há corno minha mente se dispersar como a espuma das ondas batendo contra os penhascos.
Se ao lavarmos a louça ficarmos com o pensamento voltado apenas para a xícara de chá que saboreamos a seguir, a tarefa se torna um fardo. Procuraremos automaticamente limpar a louça às pressas para nos livrar da chateação e não estaremos "lavando a louça lavá-la". E mais, nós não estaremos vivos durante tempo em que a estivermos lavando. Estaremos na verdade sendo incapazes de reconhecer o milagre da vida enquanto à beira da pia. E se não somos capazes lavar a louça por lavar, é pouco provável igualmente que seremos capazes de saborear o chá a seguir. Pois ao tomar o chá, estaremos com o pensamento voltado para outras coisas, inconscientes do fato de e temos uma xícara nas mãos. Dessa forma estaremos sendo sugados para fora da realidade presente e incapazes de viver em totalidade um minuto sequer.
A história da tangerina de Jim, à qual me referi anteriormente, se passou da seguinte maneira. Estávamos, há tempo, calmamente sentados chupando uma tangerina, enquanto Jim comentava comigo o que faríamos no futuro. Cada vez que nos ocorria um plano mais atraente ou inspirador, Jim se empolgava tanto com a idéia que esquecia inteiramente o que estava fazendo naquele momento. Ele metia um gomo de tangerina na boca e antes mesmo de começar a sorvê-lo já tinha outra porção na mão, pronta a ser enfiada pela boca adentro, inteiramente alheio ao fato de estar comendo uma tangerina.
"Você devia comer o gomo da tangerina que tem na boca" observei. Jim se espantou ao se dar conta do que estava fazendo. Se chamei sua atenção foi para fazê-lo ver que era como se não estivesse comendo nada. E de fato não estava. Na verdade estava apenas "engolindo" seus planos futuros. Alguém já disse há muito tempo atrás: "Se você não está presente, você olha e não vê, escuta mas não ouve, come mas não saboreia" .
A tangerina tem vários gomos. Se você é capaz de saborear um deles, é provável que saboreie a tangerina inteira. Mas se você não consegue saborear um gomo, não conseguirá tampouco saborear a tangerina inteira. Jim entendeu. Baixou lentamente a mão e focalizou sua atenção no pedaço que tinha na boca, sorvendo-o inteiramente antes de se servir do outro pedaço. Tempos depois, quando foi preso, ele foi capaz de encarar a prisão da mesma forma, fazendo as pazes com ela, como fez com o gomo de tangerina.
Há mais de trinta anos atrás, quando pus os pés no mosteiro pela primeira vez, os monges me deram um livro escrito pelo mestre budista Doc The, de Son Pagoda, intitulado Disciplina Essencial para Uso Diário, pedindo que memorizasse. Era um pequeno livro. Não via ter mais do que quarenta páginas, mas continha todos os pensamentos que Doc usava para alertar sua mente enquanto fazia qualquer tarefa.
Quando ele acordava de manhã, seu primeiro pensamento era: "Acabo de despertar e faço votos que cada pessoa obtenha total discernimento e clareza de visão". Ao lavar as mãos: "Estou lavando minhas mãos e espero que cada pessoa tenha puras suas mãos para receber a Realidade". O livro é todo composto de frases semelhantes. Seu objetivo era ajudar o principiante a tomar consciência de sua consciência.
Dessa forma o mestre Doc The ajudou a todos nós noviços a praticar, de forma relativamente fácil, aquilo que é ensinado no Sutra da Mente Desperta. Cada vez que você vestia o manto, lavava pratos, ia ao banheiro, dobrava o colchão, carregava água, ou escovava os dentes, podia usar um dos pensamentos contidos no livro para alertar sua consciência.
O Sutra da Mente Desperta diz: "Andando, o praticante deve estar cônscio de que está andando. Sentado, deve estar cônscio de que está sentado. Deitado, idem. O praticante deve estar cônscio de qualquer que seja a posição de seu corpo..." Temos que estar cônscios de cada respiração, cada movimento, cada pensamento e sentimento, de qualquer coisa que esteja relacionada conosco.
Mas qual o propósito das instruções contidas no Sutra? Como vamos nós encontrar tempo para praticar tal conscientização? Se você passar o dia inteiro voltado para tal prática, como vai ter tempo para fazer todo o trabalho que precisa ser feito para transformar construir uma nova sociedade?
(Do livro “Paz a cada passo” – Thich Nhat Hanh)
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