Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Felicidade Verdadeira

 

Felicidade é prática. Nós deveríamos distinguir entre felicidade e excitação e mesmo alegria. Muitas pessoas no Ocidente, especialmente na América do Norte, pensam que excitação é felicidade. Eles pensam algo, ou esperam algo que consideram felicidade, e, para eles, isto já é felicidade. Mas quando você está excitado, não está em paz. Verdadeira felicidade deve ser baseada na paz, e na verdadeira felicidade não há mais excitação.

 

Suponha que você está andando no deserto e está morrendo de sede. De repente você vê um oásis e sabe que uma vez estando lá, haverá uma corrente de água e você poderá beber de forma a sobreviver. Embora não tenha de fato visto ou bebido a água, você sentirá algo: isto é excitação, isto é esperança, isto é alegria, mas não felicidade ainda. Na psicologia budista nós distinguimos claramente entre felicidade, excitação e alegria. A felicidade verdadeira deve ser fundada na paz. Portanto se você não tem paz em você mesmo, não experimentou a felicidade verdadeira.

 

Você tem que cultivar felicidade; não pode comprá-la num supermercado. É como jogar tênis: você não pode comprar a alegria de jogar tênis em um supermercado. Pode comprar a raquete e as bolas, mas não o prazer de jogar. De forma a experimentar a alegria do tênis você tem que aprender, e treinar. Do mesmo modo, tem que cultivar a felicidade.

 

Meditação caminhando é uma maneira maravilhosa de treinar para ser feliz. Você está aqui, e olhando adiante, vê um pinheiro. Você se determina que enquanto caminha ao pinheiro, desfrutará cada passo, que cada passo irá te dar paz e felicidade. Paz e felicidade têm o poder de nutrir, de curar, de satisfazer.

 

Há aqueles de nós que são capazes de ir daqui até o pinheiro de modo a desfrutar de cada passo. Não somos perturbados por nada: nem pelo passado, nem pelo futuro, nem pelos projetos e nem pela excitação. Nem mesmo pela alegria, porque na alegria também há excitação e não há paz suficiente. E se você está bem treinado na meditação andando, em cada passo você experimentará paz, alegria e realização. Será capaz de tocar verdadeiramente a Terra em cada passo. Verá que estar vivo, estabelecido totalmente no momento presente, dar um passo e tocar as maravilhas da vida em cada passo pode ser excelente, e você vive aquela maravilha em cada momento da caminhada. Se você tiver a capacidade de andar assim, caminhará no Reino de Deus ou na Terra Pura do Buda.

 

Portanto você pode se desafiar: “Farei a meditação caminhando daqui até o pinheiro. Prometo que serei bem sucedido”. Se você não estiver livre, seus passos não te trarão paz e felicidade. Portanto cultivar a felicidade também é cultivar liberdade. Liberdade de que? Liberdade das coisas que te aborrecem, das coisas que não te deixam ter paz, das coisas que evitam que você esteja plenamente presente aqui e agora.

 

Uma monja escreveu para mim que ela tinha uma amiga visitando Plum Village. Sua amiga não seguiu o caminho monástico, ao invés disso, ela casou e agora tem uma família, um trabalho, uma casa, um carro e tudo o que ela precisa na sua vida. Ela tem sorte porque seu marido é um bom homem, não cria muitos problemas. O trabalho dela é agradável com um salário acima da média. Sua casa é bonita. Ela pensa que seu relacionamento é bom, contudo não é o que ela esperava. Claro, você nunca pode ter exatamente o que espera.

 

E ela ainda não se sente feliz e está deprimida. Intelectualmente ela sabe que em termos de conforto, ela tem tudo. Muitos de nós pensam em felicidade em termos de possuir confortos materiais e emocionais. Não muitos são tão bem sucedidos como a amiga da monja e ela sabe que é uma afortunada, mas mesmo assim ela não é feliz.

 

Nós temos a tendência de pensar em felicidade como algo que iremos obter no futuro. Nós esperamos felicidade. Nós pensamos que não temos as condições que imaginamos serem necessárias para sermos felizes, mas uma vez que as tenhamos, a felicidade estará lá. Por exemplo, você quer um diploma porque imagina que sem ele não será feliz. Portanto pensa nele dia e noite e faz tudo para consegui-lo porque acredita que irá trazê-lo felicidade. Você prevê que a felicidade existirá amanhã, quando você conseguir o diploma. Poderá haver alegria e satisfação nos dias e semanas que seguirão o momento do recebimento do diploma, mas você se adaptará à nova condição rapidamente, e em poucas semanas, não estará mais feliz. Você se acostumou a ter um diploma. Portanto aquele tipo de excitação, aquele tipo de felicidade tem vida curta. Nós criamos imunidade a felicidade, ficamos acostumados à nossa felicidade e depois de um tempo não nos sentimos mais felizes.

 

Talvez você queira se casar com alguém, pensando que se não puder casar com ele ou ela não poderá ser feliz. Você acredita que a felicidade será grande depois de casar com essa pessoa. Depois de você casar, talvez tenha um tempo de felicidade, mas eventualmente a felicidade desaparece. Não há mais excitação, alegria, e é claro felicidade. O que você tem não é o que esperava. Então talvez você passe a saber que o que você obtém não continuará por muito tempo.

 

Mesmo um bom emprego, você estará certo que não poderá mantê-lo por um longo tempo. Você poderá ser despedido, portanto de forma subjacente há medo e incerteza. Este tipo de felicidade sem paz tem elementos de medo e não pode ser felicidade verdadeira. A pessoa com quem você está morando poderá traí-lo um dia; você não pode estar certo que esta pessoa será fiel por todo o tempo. Portanto medo e incerteza estão presentes também. Para preservar estas chamadas condições de felicidade você tem que se manter ocupado o dia inteiro. E com essas preocupações, incertezas, e ocupações você não se sente feliz e se torna deprimido.

 

Portanto nós aprendemos que felicidade não é algo que temos depois de se obter as chamadas condições para felicidade: os confortos material e emocional. Felicidade verdadeira não depende desses confortos; nada pode retirá-la de você. Quando nós vamos a um centro de prática, estamos querendo aprender como cultivar a verdadeira felicidade.

 

Quando eu era um monge jovem as pessoas me diziam que os ensinamentos do Buda poderiam ser sumarizados em quatro sentenças curtas. Eu não fiquei impressionado quando li essas frases. As pessoas perguntavam ao Buda como ser feliz e ele dizia que todos os Budas ensinavam a mesma coisa:

 

Evite fazer as coisas más

Tente fazer as coisas boas

E aprenda como subjugar e purificar sua mente

Este é o ensinamento de todos os Budas

 

Muito simples e por isso eu não fiquei impressionado. Eu disse, “Todos concordam que você tem que fazer coisas boas e evitar fazer as coisas más. Subjugar e purificar a mente é muito vago”. Mas depois de seis anos de prática eu tinha uma outra idéia sobre os ensinamentos. Agora eu vejo que são muito profundos, e são um real ensinamento de felicidade.

 

Vamos analisar juntos. O gatha que aprendi estava em chinês, em quatro linhas, e cada linha continha quatro palavras.

 

Coisas más, não faça

Coisas boas, tente fazer

 

Não parece muito profundo: nada espetacular. Todos sabem, devemos fazer as coisas boas e as más não. Você não precisa ser um Buda para ensinar isso. Portanto não me impressionei. A terceira e quarta linhas são:

 

Tente purificar, subjugar sua mente

Estes são ensinamentos de todos os Budas

 

Agora eu entendo que as coisas más que deveriam ser evitadas são aquelas que criam sofrimento para você e para outras pessoas, incluindo os outros seres vivos e o ambiente. Mas como reconhecer algo como uma ação boa ou má? Plena consciência. Plena consciência ajuda você a saber o que é uma ação boa ou má; saber que se você fizer as coisas más trará sofrimento para si e para outros. Isto é uma definição muito simples e precisa de bom e mau. E é claro, as boas ações são aquelas que trazem alegria e felicidade verdadeira.

 

Tudo que é bom se esforce por fazê-lo. Isto significa fazer o que pode trazer paz, estabilidade e alegria para você e para outras pessoas. É fácil dizer, fácil de entender, mas não é fácil de fazer ou evitar. As duas primeiras coisas dependem totalmente da terceira: purificar, subjugar sua mente. A mente é a base de tudo.

 

Se há confusão na sua mente, se há ódio e fortes desejos na sua mente, então sua mente não está pura, sua mente não está sob controle, subjugada e mesmo que você queira fazer boas ações, não poderá e mesmo que queira evitar fazer as más ações também não poderá. E por isso que a base, a raiz é sua mente.

 

Quando você evitar fazer más ações está praticando compaixão, porque evitando-as significa não levar sofrimento para você e outros. A prática da compaixão é a prática da felicidade, porque felicidade é a ausência de sofrimento. Portanto tente fazer as boas ações: karuna, maitri. Este ensinamento é a prática do amor, da compaixão, da generosidade. Quando você entende, as duas primeiras sentenças passam a ter muito significado. Você pratica amor, compaixão, generosidade e essas práticas te trazem felicidade. Felicidade não pode existir sem amor. Os Budas nos recomendam amar, e o modo concreto é evitar ser causa de sofrimento e buscar oferecer felicidade.

 

Você pode fazer isso de forma fácil e bonita apenas quando sabe como subjugar sua mente, como purificar sua mente. Isto é muito especial. Se você fizer a pergunta, “Qual a coisa mais especial do budismo?”, a resposta é: a arte de subjugar sua mente, de purificar sua mente. O budismo nos dá os ensinamentos concretos de forma a purificar, subjugar e transformar nossa mente. E uma vez que sua mente esteja purificada, subjugada, transformada, a felicidade se torna possível. Em uma mente que ainda tem muita confusão, desejo, raiva, e falta de entendimento não pode haver amor e felicidade para si mesmo e para o mundo. Portanto o ponto mais importante a aprender é a arte de subjugar, controlar a mente e purificá-la. Se você não conseguiu isso, você não conseguiu nada do budismo.

 

T.S. Eliot era um poeta, escritor e crítico nascido em Boston em 1888. Quando cresceu foi para a Europa e se tornou cidadão britânico. Sua poesia é um tipo de meditação; ele olha profundamente e muitos de seus poemas são gathas mostrando seu entendimento. Ele disse que sempre tentou olhar profundamente; essas foram as palavras que ele usou: olhar profundamente, para entender as raízes do sofrimento. Ele descobriu que a mente é a raiz de todo sofrimento; sua própria mente é a fundação de todo sofrimento que temos. Isto é exatamente o que Buda disse. O sofrimento que temos que suportar vem todo de dentro da mente, uma mente não pura, não transformada, não controlada.

 

Mas T.S. Eliot disse apenas metade do que Buda disse. O Buda disse que todo sofrimento vem da mente, mas também que a felicidade vem da mente. Toda felicidade. Portanto a mente que se mantém não controlada, não transformada, confusa com ódio e discriminação, traz muita infelicidade e sofrimento, mas a mente purificada e controlada pode trazer consigo muita felicidade para si e para as pessoas próximas.

 

Quando você caminha daqui até o pinheiro começa com um passo, e treina de tal modo que cada passo contenha a energia da plena consciência, concentração e insight. Se você realmente pratica meditação caminhando, descobrirá que a cada passo é gerada a energia da plena consciência, concentração e insight, levando a você muita felicidade porque os três elementos  - plena consciência, concentração e insight – purificam e controlam sua mente trazendo a tona toda bondade da sua mente. Quando você anda dessa forma, primeiramente está consciente que está dando um passo: esta é a energia da plena consciência. Eu estou aqui. Eu estou vivo. Eu estou dando um passo. Você caminha e sabe que está dando um passo. Esta é a plena consciência no caminhar. A plena consciência te ajuda a estar aqui e agora, totalmente presente, totalmente vivo de forma a dar um passo.

 

Mestre Linji disse, “O milagre não é andar no ar ou sobre a água, ou sobre o fogo. O milagre real é andar sobre a Terra”. Andar assim – com concentração, plena consciência e insight – é fazer um milagre. Você está realmente vivo. Está realmente presente, tocando as maravilhas da vida dentro e em sua volta. Isto é um milagre.

 

Muitos de nós andam como sonâmbulos. Nós andamos, mas não estamos lá. Nós não experimentamos a vida, ou suas maravilhas, não há alegria. Nós somos sonâmbulos através da nossa própria vida e nossa vida é um sonho. O budismo fala sobre despertar deste sonho. Despertar. Um passo em plena consciência pode ser um fator de despertar que te trará à vida, que te trará o milagre de estar vivo. Quando a plena consciência estiver lá, concentração também estará porque plena consciência contém concentração.

 

Você pode ser mais ou menos concentrado. Pode ser cinqüenta, sessenta ou noventa por cento concentrado no seu caminhar, mas quanto mais concentrado mais tem chance de ter insights. Plena consciência, concentração, insight: smirti, samadhi, prajna. Cada passo que você dá gera esses poderes, essas três energias. Se você é um forte praticante essas três energias serão muito poderosas e cada passo te trará muita felicidade, a felicidade do Buda.

 

(Artigo da revista Mindinfulness Bell – Thich Nhat Hanh - outubro 2005)

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