Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Entrevista com Thich Nhat Hanh

 

Revista: É muito doloroso ver alguém que amamos enfrentando sérias dificuldades, como doença mental, transtorno do estresse pós-traumático, ou vícios. Às vezes os problemas parecem tão grandes que não nos sentimos capazes de ajudar. Acabamos tendo vontade de nos afastar dessas pessoas e de seus problemas. Outras vezes, tentamos ajudá-las e depois nos sentimos consumidos por suas dificuldades. O que fazer para ajudar em situações difíceis assim sem ficarmos saturados?

 

 Thich Nhat Hanh: SE VOCÊ SE SENTE SOBRECARREGADO, é porque está se esforçando demais. Esse tipo de energia não ajuda o outro e não o ajuda também. Não fique ansioso demais, querendo ajudar imediatamente. Há duas coisas diferentes: ser e fazer. Não pense muito no que fazer – seja primeiro. Seja a paz. Seja a alegria. Seja a felicidade. E, só depois disso, faça a alegria, faça a felicidade – com base no ser. Primeiro, você precisa se concentrar na prática do ser/estar. Estar cheio de vida, estar em paz. Estar atento. Ser generoso. Ser compassivo. Esta é a base da prática. É como se a outra pessoa estivesse sentada ao pé de uma árvore. A árvore não faz nada, mas está cheia de energia, está viva. Se você ficar como essa árvore,  emanando ondas cheias de vida, ajudará a acalmar o sofrimento do outro.

 

Sua presença deve ser agradável, calma, e você deve estar presente para ajudar essa pessoa. Isso, por si só, já é muito. Quando as crianças gostam de vir e sentar perto de você, não é porque você tem um montão de biscoitos para distribuir, mas porque é gostoso ficar ao seu lado, é revigorante. Portanto, sente-se perto de alguém que está sofrendo e faça o melhor para ser você mesmo – agradável, atento, cheio de vida.

 

Revista: Se eu estiver sentindo uma emoção muito difícil - como raiva ou tristeza profunda - e tentar me concentrar em minha respiração, não estaria evitando minhas emoções?

 

Thich Nhat Hanh: As pessoas tendem a se perder em fortes emoções e ficam sobrecarregadas. Esta não é a forma de lidar com as emoções, pois quando isso acontece você se torna vítima da emoção. Para não se tornar vítima, respire, mantenha a calma e terá o insight de que uma emoção é apenas uma emoção, nada mais do que isso. Este insight é muito importante, pois a partir dele você não sentirá mais medo. Estará calmo, sem tentar fugir, e poderá lidar melhor com a emoção. Sua respiração é você, e você precisa formar uma aliança com sua respiração para ser mais você, para ser mais forte. Isso lhe permitirá lidar melhor com sua emoção. Não tente se esquecer de suas emoções: em vez disso, tente ser mais você mesmo, tornando-se suficientemente sólido para lidar com elas.

 

Revista: Foi emocionante ver tantas crianças no retiro.

 

Thich Nhat Hanh: Eu me sinto muito bem com crianças. Nunca me separei da geração mais jovem. Sejam monásticos ou leigos, a comunicação está sempre "ligada" com a geração mais jovem. Esse é um dos elementos da minha felicidade.

 

Algumas jovens mães trazem seus bebês para a sala de meditação porque não querem perder a palestra do dharma. Isso nutre todo mundo. Os bebês não sabem o que está acontecendo, mas sentem a atmosfera de paz. Essa energia de paz é algo raro na sociedade – é muito raro encontrar mil e quinhentas pessoas sentadas, gerando plena consciência e paz. Se você oferece às crianças um gostinho de paz e amor, mesmo que sejam muito pequenas e não saibam falar ainda, não significa que não sintam. Imagine uma jovem mãe amamentando seu bebê durante o retiro. Ela está escutando o dharma, está consumindo o dharma e o bebê está consumindo o leite e o dharma ao mesmo tempo. Isso é lindo.

 

Mais tarde, quando as crianças se depararem com a crueldade do mundo, lembrarão que em algum momento tiveram a oportunidade de encontrar a energia da paz. Quando a sangha, uma comunidade budista, se reúne para praticar, pode gerar um tipo de energia pacífica e os jovens podem vivenciá-la e começar a plantar sementes para o futuro. O Budismo Engajado tenta aplicar essa energia de paz em diversos contextos. A respiração em plena consciência pode ser praticada nas escolas, hospitais, prefeituras, até no Congresso.

 

Revista: Viver no momento presente e divertir-se com a mídia são aspectos conflitantes? É possível estar em plena consciência e desfrutar da internet, da TV, de filmes e livros?

 

Thich Nhat Hanh: Há bons livros e filmes por aí. Tudo bem, é bom desfrutar deles. No entanto, às vezes a qualidade do filme ou do livro não é nada boa e, mesmo assim, você não deixa de assistir ou ler porque, se parar, terá que voltar para o sofrimento que está dentro de você. Esta é a prática de muitas pessoas em nossa sociedade. Muitas pessoas não conseguem ficar com si mesmas. Sentem dor, tristeza, preocupações internas e lêem, vêem filmes ou escutam música para encobrir tudo, para fugirem de si mesmas.

 

Consumir mídia dessa forma é simplesmente uma fuga e não tem um efeito duradouro. Você pode se esquecer do sofrimento por um tempo, mas no final terá que voltar para dentro de si. O Buda recomendou que devemos nos esforçar para não fugirmos de nós mesmos. Em vez disso, devemos aprender a nos cuidar e a transformar nosso sofrimento.

 

Revista: O que você diria a alguém que acha a meditação sentada dolorosa, difícil e que luta para praticar?

 

Eu diria para parar.

 

Revista: Verdade?

 

Thich Nhat Hanh: Sim, sim. Se você não acha agradável, então não pratique meditação sentada. Você precisa aprender o espírito correto do sentar. Se você tiver que se esforçar muito ao sentar, ficará tenso e isso produzirá dor em todo o corpo. Sentar deve ser algo agradável. Quando você liga a TV na sala da sua casa, pode ficar lá horas a fio, sem sofrer. Mas, ao sentar para meditar, você sofre. Por quê? Porque você precisa lutar. Você quer ter êxito na meditação, então acaba brigando. Ao assistir TV, você não luta. É preciso aprender a sentar sem brigar. Se você souber se sentar dessa forma, a meditação será muito agradável.

 

Em uma das visitas de Nelson Mandela à França, um jornalista lhe perguntou o que ele mais gostava de fazer. Ele respondeu que, por estar sempre ocupado, o que ele mais gostava de fazer era simplesmente sentar e não fazer nada. Porque sentar e não fazer nada é um prazer – restaura as energias. É por isso que o Buda fala de sentar-se em uma flor de lótus. Quando você se senta para meditar, deve se sentir leve, cheio de vida, livre. E, se não sentir isso, a meditação sentada se tornará  um trabalho forçado.

 

Às vezes não dormimos o suficiente ou estamos resfriados, algo assim. Neste caso, talvez a meditação sentada não seja tão agradável como você gostaria. Mas se você estiver normal, é sempre possível sentir o prazer de sentar. O problema não é sentar ou não sentar, mas como sentar. Como sentar para que você possa se beneficiar ao máximo – caso contrário, estará perdendo tempo.

 

Revista: Você enfatiza muito o “desfrutar” – desfrutar da respiração, da meditação sentada, do caminhar, da vida como um todo – você destaca isso muito mais do que outros mestres budistas.

 

Thich Nhat Hanh: Nos ensinamentos do Buda, a tranqüilidade e a alegria são elementos de iluminação. Já há muito sofrimento na vida. Por que sofrer ainda mais ao praticar o Budismo? Você pratica o Budismo para sofrer menos, certo?

 

O Buda é uma pessoa feliz. Ao se sentar, o Buda senta-se feliz. Ao caminhar, o Buda caminha feliz. Por que vou querer fazer diferente do Buda? Talvez as pessoas sintam medo do que os outros possam dizer: “Você não é um praticante sério. Você sorri, você ri, você se diverte. Para praticar com seriedade você precisa ser severo, ficar muito sério.” Talvez muita gente que queira receber mais doações aja dessa forma – para dar a impressão de que pratica mais seriamente do que  outros.

 

Pense como seria passar uma noite inteira meditando. Você não tem permissão para descansar e acha que isso é prática intensiva, mas sofre a noite inteira e toma café para conseguir ficar acordado. Isso não faz sentido. É a qualidade da meditação sentada que poderá ajudá-lo a se transformar, e não ficar sentado muito tempo e sofrendo com isso. A meditação sentada e caminhando foram feitas para serem desfrutadas e para nos permitirem olhar profundamente e desenvolver insights. Esses insights poderão nos libertar do medo, da raiva e do desespero.

 

Revista: Gostei muito da meditação caminhando ao ar livre que fizemos neste retiro.

 

Thich Nhat Hanh: Em geral, na tradição budista, você se senta, depois se levanta, caminha lentamente na sala de meditação e depois se senta de novo. Não fazemos assim aqui. Em vez disso, caminhamos ao ar livre. Essa prática ajuda muito, pois você pode aplicá-la na vida diária. Você caminha normalmente – não excessivamente devagar – assim as pessoas nem percebem que você está praticando e vêem isso como algo normal. E, ao voltar para casa, ou ao andar do estacionamento para o escritório, você pode desfrutar desse caminhar também.

 

A base da prática consiste em gostar do que você está fazendo – gostar de caminhar, de sentar, de se alimentar e tomar banho. É possível desfrutar de tudo isso, mas nossa sociedade está organizada de tal forma que não temos tempo para desfrutar. Temos que fazer tudo rápido demais.

 

Revista: Na sua opinião, o que faz com que uma pessoa seja budista?

 

Thich Nhat Hnah: Uma pessoa pode não ser chamada de budista, mas pode ser mais budista que um budista.  O budismo é composto por plena consciência, concentração e insight. Se você tiver todos eles, você é budista. Se não tiver, não é budista. Se você olha para uma pessoa e vê que ela tem plena consciência, compaixão, é compreensiva e tem insight, então saberá que ela é budista. Pode até ser um monástico mas, se não tiver essas energias e qualidades, terá a aparência de budista, mas não o conteúdo de um budista.

 

Revista: Existe alguma cerimônia para se tornar budista?

 

Thich Nhat Hanh: Não, não é através de uma cerimônia que alguém se torna budista. É através do compromisso com a prática. Os budistas se apegam a muitos rituais e cerimônias, mas o Buda não gosta disso. Nos sutras, principalmente no ensinamento dado pelo Buda logo após sua iluminação, ele disse que devemos nos libertar de rituais. Você não se ilumina nem se liberta por fazer rituais, mas as pessoas acabaram tornando o Budismo excessivamente ritualístico. Não estamos sendo muito bonzinhos com o Buda ao agirmos dessa forma.

Revista: É preciso acreditar em reencarnação para ser budista?

 

Thich Nhat Hanh: Reencarnação significa que há uma alma que sai do seu corpo e entra em outro corpo. Essa é uma idéia muito popular e muito errônea da continuação no Budismo. Se você acredita que existe uma alma, um self que habita um corpo e que se vai quando o corpo se desintegra e assume outra forma, isso não é budismo.

 

Ao olhar para uma pessoa, você vê cinco skandhas, ou elementos: forma, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência. Não há alma, não há self fora desses cinco, portanto quando os cinco elementos se dissolvem, o karma, as ações que você fez ao longo da vida são sua continuação. O que você fez ou pensou ainda continua existindo como energia. Você não precisa de uma alma, ou de um self para continuar. É como uma nuvem. Mesmo quando a nuvem não está ali, ela sempre continua existindo como neve ou chuva. A nuvem não precisa ter alma para ter continuidade.

 

Não há início nem fim. Você não precisa esperar até que este corpo se dissolva totalmente para ter continuidade – você continua a cada momento. Vamos supor que eu transmita minha energia a centenas de pessoas; essas pessoas serão minha continuação. Se você olhar para elas, poderá me ver nelas. Se você acha que sou isso [Thay aponta para si], então você não me viu. Mas se você me vir em minhas palavras e minhas ações, verá que elas são minha continuação. Ao olhar para meus discípulos, meus alunos, meus livros e meus amigos, você vê minha continuação. Nunca morrerei. Este corpo se dissolverá, mas isso não significa que morrerei. Continuarei, para sempre.

 

E isso é verdade para todos nós. Você é mais do que este corpo porque os cinco skandhas estão sempre produzindo energia. Isto se chama karma ou ação. No entanto, não há ator – você não precisa de um ator. A ação já é suficiente. Isto pode ser entendido em termos de física quântica. Massa e energia, e força e matéria – não são duas coisas separadas. São a mesma coisa.

 

Revista: O que fazer com o grau de materialismo em nossa cultura?

 

Thich Nhat Hanh: Podemos organizar um ambiente onde as pessoas vivam felizes, com simplicidade, e convidar outras para vir e observar. É a única coisa que as convencerá a abandonar sua idéia materialista de felicidade. Acham que serão felizes somente quando tiverem muito para consumir, mas muitas pessoas são muito ricas e infelizes. E há aquelas que consomem bem menos e são mais felizes.

 

Precisamos mostrar que viver com simplicidade, com a prática do dharma, pode ser algo que nos realiza muito. As pessoas precisam ver e vivenciar isso primeiro para se convencerem.  Em Plum Village, rimos o tempo todo e, ainda assim, nenhum de nós tem uma conta no banco. Ninguém tem um carro particular ou seu próprio celular. Só consumimos alimentos vegetarianos. E não sofremos por não comermos ovos ou carne. Na realidade, isso nos deixa mais felizes, pois sabemos que não estamos consumindo seres vivos e protegemos nosso planeta. Isso traz muita alegria. Temos a sorte de conseguirmos viver assim e de nos alimentarmos dessa forma.

 

Muita gente acha que, se não tiver muito dinheiro, se não conquistar uma alta posição na sociedade, não poderá ser feliz de verdade. É duro desapegar-se de uma crença, mas é possível quando você vê a verdade e percebe que pode ser feliz de outra forma. Ver esta verdade possibilitará o futuro de nossos filhos, portanto acho que nos círculos budistas precisamos nos reorganizar e mostrar às pessoas uma forma de viver feliz com base na compreensão mútua, não no materialismo. Não basta ouvir uma palestra do dharma, pois uma palestra do dharma é só uma palestra. As pessoas precisam ver uma comunidade não-materialista. Somente quando virem as pessoas vivendo assim, poderão se convencer de que isso é possível.

 

(Entrevista exclusiva feita por Andrea Miller para Revista Shambhala Sun – janeiro de 2012)

(Tradução: Denise Kato)

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