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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
Meus verdadeiros nomes
Quando estive nos Estados Unidos em 1966, dei uma palestra em uma igreja em Minneapolis, e depois fiquei muito cansado. Fui caminhando lentamente em meditação para o meu quarto porque assim poderia desfrutar do ar frio e perfumado da noite e ser nutrido e curado por ele.
Enquanto eu caminhava conscientemente, dando cada passo em liberdade, um carro veio por trás e deu uma parada brusca muito perto de mim. O motorista abriu a porta, olhou para mim e gritou: "Isto é a América; não é a China!" e foi embora. Talvez ele tenha pensado, "Quem é este chinês que se atreve a andar em liberdade na América", e ele não podia suportar isso. Talvez ele tenha pensado, "Isto é a América; somente as pessoas brancas podem viver aqui. Chinês, como você ousa vir aqui, como se atreve andar com essa liberdade? Não tens o direito de andar assim. Esta é a América; Isto não é China."
Eu não fiquei com raiva — que foi a coisa boa sobre isso — na verdade, eu achei aquilo um pouco engraçado. Pensei: "se ele parasse só por um momento, eu iria lhe dizer, ' Concordo com você 100%, isto é a América; Esta não é a China. Por que você gritou comigo?' ”
Sabemos que a semente da discriminação reside em todos nós. Eu tenho clamado por todos os tipos de pessoas de todas as diferentes tonalidades de cor. Os oprimidos e os opressores estão dentro de cada um de nós, e nossa prática é alcançar a sabedoria da não discriminação. Quando as pessoas nos chamam de afro-americanos, devemos responder, "Sim". Quando nos chamam de africanos, podemos responder, "Sim", e quando nos chamam de americanos, também respondemos, "Sim".
Quando as pessoas nos chamam dos nomes daqueles que são discriminados, respondemos, "Sim". E quando eles nos chamam dos nomes daqueles que estão discriminando, nós também respondemos, "Sim". Todos eles somos nós. Dentro de cada um de nós estão ambos a vítima de discriminação e o que discrimina.
Nos primeiros anos de meu exílio na França, me falaram sobre uma menina de onze anos que fugia do Vietnã com sua família e outras “boat people”. Ela foi estuprada por um pirata, bem ali no seu barco. Seu pai tentou intervir, mas o pirata o jogou no mar. Depois que a menina foi estuprada, ela saltou para o mar, cometendo suicídio. Recebemos a notícia desta tragédia, enquanto estávamos trabalhando no nosso escritório da delegação de paz budista em Paris. Eu fiquei tão nervoso que não conseguia dormir. Senti raiva, culpa e desespero.
Naquela noite na meditação sentada, visualizei-me nascendo como um menino em uma família de pescadores muito pobre na costa da Tailândia. Meu pai era um pescador. Ele não sabia ler, nunca tinha ido para a escola ou para o templo. Ele nunca tinha recebido qualquer ensinamento budista ou qualquer tipo de educação. Os políticos, educadores e assistentes sociais na Tailândia nunca haviam ajudado meu pai. Minha mãe também não sabia ler ou escrever, e ela não sabia como criar seus filhos. A família do meu pai tinha sido de pescadores pobres por muitas gerações — meu avô e meu bisavô tinham sido pescadores também. Quando fiz treze anos, eu também me tornei um pescador. Eu nunca fui à escola, nunca me senti amado, ou compreendido, e vivi na pobreza crônica persistente que passava de uma geração para outra.
Então um dia um outro jovem pescador me diz: "Vamos sair para o oceano. Há “boat people” que passam perto daqui e muitas vezes eles carregam ouro e joias, às vezes até mesmo dinheiro. Só uma viagem e nós poderemos sair desta pobreza." Aceito o convite, pensando, "nós só precisamos tirar um pouco de suas joias. Não fará nenhum mal, e então poderemos nos livrar desta pobreza." Me tornei um pirata. A primeira vez que eu saio, não estou consciente que me tornei um pirata. Uma vez no oceano, comecei a ver os outros piratas estuprarem mulheres jovens nos barcos. Eu nunca tinha tocado em uma mulher. Eu nunca tinha sequer pensado em dar as mãos ou sair com uma mulher. Mas então no barco há uma jovem muito bonita e nenhum policial lá para me impedir. Eu tinha visto outras pessoas fazerem, e me perguntei: "por que não tentar também? Esta é minha chance de experimentar o corpo de uma jovem mulher." E assim eu fiz.
Se você estivesse lá no barco e tivesse uma arma, poderia ter atirado em mim. Mas atirar em mim não me ajudaria. Ninguém nunca tinha me ensinado como amar, como compreender, como ver o sofrimento dos outros. Meu pai e minha mãe não me ensinaram também. Eu não sabia o que era saudável e o que não era saudável, eu não entendia causa e efeito. Estava vivendo no escuro. Se você tivesse uma arma, poderia atirar em mim, e eu morreria. Mas você não seria absolutamente capaz de me ajudar.
Enquanto eu continuava sentado, vi centenas de bebês nascendo naquela noite ao longo da costa da Tailândia, em circunstâncias semelhantes, muitos deles meninos. Se os políticos e ministros pudessem olhar profundamente, veriam que, dentro de vinte anos, aqueles bebês se tornariam piratas. Quando eu fui capaz de ver isso, entendi as ações do pirata. Quando me coloquei na situação de ter nascido em uma família sem educação e pobre, vi que não seria capaz de evitar tornar-me um pirata. Quando vi aquilo, meu ódio desapareceu, e eu pude sentir compaixão por aquele pirata.
Quando vi aqueles bebês nascendo e crescendo sem nenhuma ajuda, sabia que eu tinha que fazer algo para que eles não se tornassem piratas. A energia de um bodhisattva, um ser compassivo com amor ilimitado, cresceu dentro de mim. Eu não sofria mais. Eu poderia abraçar não só o sofrimento da criança de onze anos que foi estuprada, mas também o sofrimento do pirata.
Quando você se dirigir a mim como "Venerável Nhat Hanh,"... eu respondo, "Sim". Quando você chamar o nome da criança que foi estuprada, também respondo, "Sim". Se você chamar o nome do pirata, eu também vou dizer "Sim". Dependendo de onde eu nasci e sob quais circunstâncias eu cresci, eu poderia ter sido a garota... ou talvez tivesse sido o pirata.
Eu sou a criança da Uganda ou do Congo, só pele e ossos, minhas duas pernas tão finas como varas de bambu. E também sou o comerciante de armas, vendendo armas mortais para o Congo. Aquelas pobres crianças no Congo não precisam de bombas, precisam de comida para comer. Mas nos Estados Unidos, vivemos através da produção de bombas e armas. E se queremos que os outros comprem armas e bombas, então temos que criar guerras. Se você chamar o nome da criança no Congo, respondo, "Sim". Se você chamar o nome de quem produz as bombas e armas, eu também respondo, "Sim". Quando eu sou capaz de ver que eu sou todas essas pessoas, meu ódio desaparece, e estou determinado a viver de tal forma que possa ajudar as vítimas e também ajudar aqueles que criam e perpetram guerras e destruição.
(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – At Home on the World)
(Tradução – Leonardo Dobbin)
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