Sangha
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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
Natureza e Não Violência
Suponha que peguemos uma semente de milho e a plantemos em um solo úmido. Uma semana ou mais depois a semente irá brotar. Cerca de três dias depois, podemos perguntar ao jovem milho, “Querida planta, você se lembra do tempo que era uma semente?” A planta pode ter se esquecido, mas como estivemos observando, sabemos que a jovem planta de milho verdadeiramente veio da semente.
Quando olhamos para a planta, não vemos mais a semente, portanto podemos pensar que a semente morreu. Mas a semente não morreu, se tornou a planta. Se você for capaz de ver a semente de milho na planta de milho, tem o tipo de sabedoria que o Buda chamou de sabedoria da não-discriminação. Você não discrimina entre a semente e a planta. Você vê que elas intersão entre si, que são a mesma coisa. Você não pode tirar a semente da planta, e não pode tirar a planta da semente. Olhando profundamente para o jovem pé de milho, pode ver a semente de milho ainda viva, mas com uma nova aparência. A planta é a continuação da semente.
A prática da meditação nos ajuda a ver coisas que as outras pessoas não podem ver. Olhamos profundamente e vemos que pai e filho, pai e filha, mãe e filho e mãe e filha, semente de milho e pé de milho têm uma relação próxima. É por isso que deveríamos praticar o despertar para o fato, para a verdade, que inter-somos. O sofrimento de um é o sofrimento do outro. Se muçulmanos e cristãos, hindus e muçulmanos, israelenses e palestinos percebessem que são irmãos e irmãs, que o sofrimento de um lado é o sofrimento do outro, então suas guerras iriam parar. Quando virmos que todos os seres vivos são feitos da mesma natureza, como poderia haver divisão entre nós? Como poderia haver falta de harmonia? Quando percebermos a nossa natureza interser, pararemos de culpar, explorar e matar, porque saberemos que inter-somos. Este é o grande despertar que podemos ter de forma que a Terra seja salva.
Nós seres humanos sempre nos excluímos do resto do mundo natural. Classificamos outros animais e seres vivos como natureza, uma coisa fora de nós, e agimos como se de alguma forma fossem separados de nós. Então perguntamos, “Como deveríamos lidar com a natureza?” Deveríamos lidar com a natureza da mesma forma de lidamos conosco mesmo: de forma não-violenta. Seres humanos e a natureza são inseparáveis. Da mesma forma como não deveríamos nos ferir, não deveríamos ferir a natureza. Ferir a natureza é nos ferir, e vice-versa.
Causar dano a outros seres humanos causa dano a nós mesmos. Acumular riqueza e possuir excessivas porções dos recursos naturais do mundo nega aos companheiros humanos a chance de viver. Participar de um sistema social opressivo e injusto cria e aprofunda a distância entre ricos e pobres e agrava a situação de injustiça social. Toleramos excessos, injustiças e guerras, inconscientes que a raça humana sofre e está faminta, o prazer da falsa segurança e riqueza é uma ilusão.
Está claro que o destino da cada indivíduo está intrinsecamente ligado ao destino de toda a raça humana. Devemos deixar os outros viver se quisermos viver. A única alternativa para coexistência é “co- não-existência”. Uma civilização na qual devemos matar e explorar outros de forma a viver não é uma civilização saudável. Para criar uma civilização saudável, todos deveriam ter acesso igual a educação, trabalho, comida, abrigo, cidadania mundial, ar e água puros e a habilidade de circular livremente e se estabelecer em qualquer parte da Terra. Sistemas políticos e econômicos que negam às pessoas estes direitos ferem toda a família humana. Consciência do que está acontecendo com a família humana é necessária para reparar o estrago que já foi feito.
Para trazer paz para a família humana devemos trabalhar por uma coexistência harmoniosa. Se continuarmos a nos fechar para o resto do mundo, nos aprisionando em pequenas preocupações e problemas imediatos, provavelmente não faremos a paz ou sobreviveremos. A raça humana é parte da natureza. Precisamos ter este insight antes de termos harmonia entre as pessoas. Crueldade e desordem destroem a harmonia da família humana e destroem a natureza. Entre as medidas curativas necessárias, uma legislação que seja não-violenta para nós mesmos e para a natureza e que ajude a prevenir que sejamos cruéis e criemos desordem.
Cada indivíduo e toda a humanidade são parte da natureza e deveriam ser capazes de viver em harmonia com ela. A natureza pode ser cruel e criar desordem. Mas temos que tratar a natureza da mesma maneira que tratamos a nós mesmos como indivíduos e como família humana. Ao tentarmos dominar ou oprimir a natureza, ela se rebela. Devemos ser profundos amigos da natureza de forma a gerenciar certos aspectos dela e criar harmonia com nosso meio-ambiente. Isto requer profundo entendimento da natureza.
Tufões, tornados, secas, enchentes, erupções vulcânicas, proliferação de insetos, todos constituem um perigo para a vida. Podemos grandemente prevenir a destruição que os desastres naturais causam através do início do trabalho com a terra, fazendo planos e tomando decisões que levam em conta a natureza da terra, ao invés de tentar impor um controle completo sobre ela com barreiras, desmatamento e outros dispositivos e políticas que no final causam mais estrago.
Um exemplo do que acontece quando tentamos de forma excessiva controlar a natureza é o uso abusivo de pesticidas, que indiscriminadamente matam muitos insetos e pássaros e perturbam o equilíbrio ecológico. O crescimento econômico que devasta a natureza pela poluição e exaustão dos recursos não renováveis torna impossível para os seres viverem na Terra. Tal crescimento econômico pode parecer temporariamente beneficiar alguns humanos, mas na realidade rompe e destrói a natureza como um todo.
A harmonia e equilíbrio dentro do indivíduo, sociedade e natureza estão sendo destruídos. Indivíduos estão doentes, a sociedade está doente e a natureza está doente. Precisamos restabelecer a harmonia e o equilíbrio, mas como? Onde podemos começar o trabalho de cura - no indivíduo, na sociedade ou no meio-ambiente? Precisamos trabalhar nos três domínios. Pessoas de diferentes disciplinas tendem a enfatizar suas áreas particulares. Por exemplo, políticos consideram que um efetivo rearranjo da sociedade seja necessário para a salvação dos humanos e da natureza e, portanto urgem para que todos se engajem na luta para fazer mudanças no sistema político.
Os monges budistas são como psicoterapeutas e sendo assim, tendemos a olhar para o problema do ponto de vista da saúde mental. A meditação objetiva a criação de harmonia e equilíbrio na vida do indivíduo. A meditação budista lida com ambos, corpo e mente, usando a respiração como ferramenta de acalmar e harmonizar todo o ser humano. Como na prática terapeuta, o paciente é colocado em um ambiente que favorece a restauração da harmonia.
Usualmente psicoterapeutas gastam seu tempo observando e depois aconselhando seus pacientes. Contudo, sei de alguns que, como os monges, observam a eles mesmos primeiro, reconhecendo a necessidade de primeiramente libertar a eles mesmos dos medos, ansiedades e desespero que existe em cada um de nós. Muitos terapeutas parecem pensar que eles mesmos não têm problemas mentais, mas o monge reconhece nele mesmo a sua susceptibilidade a medos e ansiedades e a doença mental causada pela desumanidade de nosso sistema econômico e social.
Os praticantes budistas acreditam que a natureza interconectada do indivíduo, sociedade e meio ambiente físico se revelará a si mesma para nós assim que nos recuperarmos e gradualmente cessaremos de sermos possuídos por ansiedade, medo e dispersão da mente. Entre os três domínios – individual, sociedade natureza – é o individual que começa a efetuar a mudança. Mas para efetuar mudança, o indivíduo precisa estar inteiro. Como isto requer um meio-ambiente favorável para cura, o indivíduo precisa buscar um estilo de vida que seja livre da destrutividade.
Nossos esforços de mudar a nós mesmos e mudar o meio-ambiente são ambos necessários, mas um não pode acontecer sem o outro. Sabemos o quanto é difícil mudar o meio-ambiente se os indivíduos não estão em um estado de equilíbrio. Nossa saúde mental requer que o esforço para recuperarmos nossa humanidade deva ser prioridade.
Recuperar a saúde mental não significa simplesmente nos ajustarmos ao mundo moderno de rápido crescimento econômico. O mundo está doente e adaptar-se a um ambiente não saudável não pode trazer saúde real. Muitas pessoas que fazem terapia são na verdade vítimas da vida moderna que nos separa uns dos outros e do resto de toda a família humana. Uma maneira de ajudar é mudar-se para uma área rural onde tenhamos a chance de cultivar a terra, nossa própria comida, dividindo a mesma vida de milhões de pequenos fazendeiros ao redor do mundo.
Para a terapia ser efetiva, precisamos de mudança ambiental. Atividades políticas são uma forma, mas não são a única. Tranqüilizar-nos com consumismo excessivo não é a saída. O envenenamento de nosso ecossistema, a explosão de bombas, a violência na nossa vizinhança e na sociedade, a pressão do tempo, barulho e poluição, as multidões solitárias – tudo isto foi criado pelo curso de nosso crescimento econômico e são fontes de doença mental. Seja o que for que fizermos para pormos um fim a essas causas é medicina preventiva.
Manter nossa saúde mental como a prioridade número um significa que devemos também reconhecer nossa responsabilidade por toda família humana. Devemos trabalhar para evitar que outros se tornem doentes, ao mesmo tempo que resguardamos nossa própria humanidade. Sejamos monges, monjas, professores, terapeutas, artistas, carpinteiros ou políticos somos também seres humanos. Se não aplicarmos a nós mesmos o que tentamos ensinar a outros, nos tornaremos mentalmente doentes. Se apenas continuarmos com nossas vidas, perpetuando o status quo, gradualmente nos tornaremos vítimas do medo, ansiedade e egoísmo.
Uma árvore se revela para um artista quando o artista pode estabelecer uma certa relação com ela. Alguém que não é humano o suficiente para olhar para seus companheiros humanos e não os ver pode olhar para uma árvore e não vê-la. Muitos de nós não podemos ver as coisas porque não estamos inteiros. Quando estamos inteiros, podemos ver como uma pessoa através de uma vida plena pode demonstrar para todos nós que a vida é possível, que um futuro é possível. Mas a questão, “há um futuro possível?” é sem sentido se não formos capazes de ver os milhões de companheiros humanos que sofrem, vivem e morrem ao nosso redor. Apenas depois de realmente tivermos os visto, então seremos capazes de ver a nós mesmos e ver a natureza.
Lembrem o tsunami de 2004 no Oceano Índico, no qual morreram centenas de milhares de pessoas na Indonésia, Sri Lanka, Tailândia, Índia e África. As pessoas que vieram da Europa, Austrália e Estados Unidos em férias também morreram no tsunami. Todos nós sofremos por todo o mundo e perguntamos a questão, por quê? Por que Deus permitiu que tal coisa acontecesse? Por que essas pessoas tinham que morrer? Eu também sofri. Mas eu pratiquei. Eu sentei e pratiquei olhando profundamente. E o que eu vi é que quando estas pessoas morreram, também morremos com elas, porque inter-somos com elas.
Você sabe que quando seu amado morre, uma parte de você também morre; de alguma forma você morre com seu amado. Isto é fácil de entender. Portanto se você tem entendimento e compaixão, então quando vemos outras pessoas morrendo, mesmo estranhos do outro lado do mundo, sofremos e morremos com eles. Portanto temos que viver por eles. Temos que viver de tal forma que o futuro seja possível para nossos filhos e seus filhos. Se suas mortes têm ou não significado dependerá de nossa maneira de viver. Este é o insight do interser. Eles estão em nós e estamos neles. Quando eles morrem, também morremos. Quando continuamos a viver, eles continuam a viver conosco. Com este insight, você sofre menos e sabe como continuar. Você carrega todos eles dentro de si e, sabendo disso, você tem paz.
Praticar a plena consciência e olhar em profundidade para a natureza das coisas é descobrir sua verdadeira natureza, a natureza do interser. Achamos paz e podemos gerar a força que precisamos de forma a estar em contato com tudo. Com este entendimento, podemos facilmente sustentar o trabalho de amor e cuidado pela Terra e pelos outros por um longo tempo.
(Do livro “The world we have” – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)
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