Sangha
Virtual
Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
Objeto da Oração
Rezamos pelos motivos os mais diversos. Às vezes queremos expressar nosso sentimento de gratidão por aquilo que recebemos na vida. Às vezes rezamos para encontrar clareza e orientação durante um tempo de crise. Outras vezes, temos desejos, aspirações e coisas que gostaríamos que acontecessem. Em geral, as pessoas rezam em primeiro lugar por si mesmas e, depois, por aqueles a quem amam. Normalmente não rezam por estranhos e especialmente pelos que elas odeiam, pelas pessoas que as fizeram sofrer.
O que a maioria de nós quer? A primeira coisa é a saúde. Há muito pouco a fazer quando o corpo está sofrendo. Em segundo lugar, queremos sucesso em tudo o que fazemos. Quer sejamos um monge, ou um empresário, queremos ser bem-sucedidos. A terceira coisa que a maioria das pessoas deseja é um bom relacionamento, ou amor. Se o seu relacionamento com os outros não for bom, não há maneira de sua vida ser feliz. Rezamos, então, para que o nosso contato diário com os outros seja harmonioso. A maioria de nós, jovens e velhos de qualquer país do mundo, queremos estas três coisas.
Comecemos pela saúde. Todos desejamos ser plenamente saudáveis, mas a saúde perfeita é uma idéia. É algo não realizável nesta vida. A razão de ainda estarmos vivos é que tivemos má saúde no passado e nossos corpos desenvolveram resistência e imunidades a certas doenças. Não existe aquele que não tenha passado por pequenas doenças; continuamente caímos doentes, sobretudo quando crianças. Viroses e bactérias ameaçam constantemente o ser vivo. Organismos microscópicos estão sempre no ar, na água e em nossa comida. E pelo fato de termos sido envoltos e atacados sempre por organismos microscópicos, somos capazes de produzir anticorpos que nos protegem e defendem. Porque estivemos doentes, somos capazes de nos proteger e continuar a viver.
Portanto, não se queira desejar saúde sem doença. Sem doença não há saúde. Temos de reconhecer este fato e viver em paz e com alegria com a doença que temos. Se tiver um pouco de gases a mais na barriga, você ainda pode orar. Com dor de estômago ou dor nas costas, você pode rezar para conseguir paz e alegria; isto se chama prática. O desconforto que você sente é uma oportunidade de praticar. Se oramos e meditamos só quando estamos com perfeita saúde, jamais seremos capazes de produzir paz e alegria. Temos de assinar um tratado de paz para podermos viver em paz com nossa má saúde.
Evidentemente, precisamos de um mínimo de saúde para sermos capazes de praticar com êxito. Podemos ter um horto com três centenas de belas árvores: pinheiros, ciprestes, palmeiras, salgueiros, cerejeiras, pereiras, macieiras, etc. Em nosso horto pode haver três ou quatro árvores que morreram ou que estão definhando. Mas isto não quer dizer que nosso horto não continue bonito. Ele está vivo como um todo e muito bem.
Nosso corpo é como este horto. Os seus olhos ainda estão bons? Seus pulmões estão bem? Seus pés ainda conseguem locomovê-lo de um lugar para outro? Maomé, Buda e Jesus certamente tiveram dores de estômago algumas vezes. Doença e morte fazem parte da vida.
A segunda coisa pela qual as pessoas muitas vezes rezam é o sucesso. Cada um quer ter sucesso. O comerciante quer ter êxito em seu negócio. O escritor quer ficar famoso para vender mais os seus livros. O cineasta quer que seu filme tenha ampla distribuição. Todos querem prosperar em sua profissão ou atividade. Sempre que chega um novo ano, desejamo-nos mutuamente prosperidade. Mas é garantido que esta prosperidade seja elemento essencial de nossa felicidade? É uma pergunta digna de ser formulada. E acontece também que a prosperidade de um pode levar à ruína de outra pessoa. Muitas coisas só têm valor relativo. Nós nos sentimos prósperos porque temos mais do que outra pessoa. Com certeza, sempre teremos mais do que alguns e menos do que outros. Se nossa prosperidade só visa ter mais do que os outros, não levará a felicidade nenhuma. Quando rezamos, pois, para ter prosperidade, parece ter sentido rezar apenas por aquilo de que precisamos para ser saudáveis. Rezamos para ter comida e amparo suficientes para viver com satisfação o momento atual.
E assim nossa felicidade não precisa depender da prosperidade, mas dependerá de nossos relacionamentos. Pois a felicidade não pode existir sem amor. Muitas vezes rezamos para que haja amor e harmonia entre nós e a pessoa que amamos, entre nós e a nossa família, entre nós e a nossa sociedade. Podemos fazer alguma coisa ou rezar por alguma coisa a fim de melhorar nossos relacionamentos? E como deveríamos rezar? De acordo com que fórmula?
Mesmo que você não reze com muita freqüência e que a prática espiritual não ocupe parte muito grande de sua vida, você às vezes reza para ter saúde, prosperidade e bons relacionamentos. Mas para aquelas pessoas que se tornam monges ou monjas e para aquelas outras com intensa prática espiritual, há outro objeto da oração. No canto budista "O discípulo toca a terra com respeito", o objetivo é colocado assim:
Ir além do ciclo do nascimento e da morte, superar o não-nascido e o imorredouro.
Evidentemente, as pessoas que devotaram sua vida à prática espiritual também rezam para ter saúde, sucesso e harmonia, mas só estas coisas não bastam. Quando você aprofunda sua prática espiritual, começa a questionar. Você quer saber com toda clareza: Donde eu vim? Por que estou aqui? Para onde irei? Após a morte, continuarei existindo ou não? Há alguma relação entre mim e Buda, entre mim e Deus? Qual é a intenção primeira de eu estar aqui? Estas são as interrogações, as orações, de um devoto praticante espiritual.
Se estivermos praticando e só rezarmos por saúde, sucesso e bons relacionamentos, ainda não somos um praticante autêntico. Um praticante autêntico tem de rezar em nível mais profundo. Temos de praticar de tal maneira que em nossa vida cotidiana sejamos capazes de intuir a natureza interdependente de todos os seres. O maior desejo dos praticantes espirituais é descobrir a essência das coisas e estar em contato com esta essência. Quando existe esta satisfação, podemos ser felizes, tendo ou não tendo boa saúde. Quer tenhamos sucesso ou não em nosso trabalho, isto não nos afetará; não sofreremos. Quando nossa felicidade não depende de nosso sucesso ou de nossa saúde, somos menos propensos a discutir com os outros ou a fazê-los sofrer. O bom relacionamento se produzirá então naturalmente.
Em que é diferente este tipo de oração? É diferente por causa do nível de nossa oração. Quando tivermos estado em contato com a dimensão última, com o nirvana, quanto tivermos estado em contato com Deus, então podemos aceitar tudo o que acontece aqui e agora. Já estivemos na terra da paz e da alegria e não precisamos sofrer. Não faz diferença se temos mais dez ou apenas mais cinco anos de vida. Mudamos doravante nosso modo de ver o mundo.
Se não rezarmos e aprofundarmos nossa prática espiritual, sofreremos muito quando não conseguirmos o que desejamos neste mundo. Mas, se tivermos estado em contato com a essência, com a identidade de todas as coisas, então não importa que tenhamos ou não o que queremos. Antes disso, quando não conseguíamos o que queríamos, pensávamos que toda nossa vida era um fracasso. Mas quando estivermos em contato com a dimensão última, já não importa que nosso templo ou centro de treinamento arda em chamas, que as pessoas manchem nossa reputação, ou que tenham inveja de nós, que nos acusem injustamente; podemos ainda assim sorrir, estar em paz e alegres como sempre. Aquilo que considerávamos ser sucesso, aquilo que julgávamos ser a base de nossa vida feliz, disso já não precisamos. Porque nossa felicidade está agora na dimensão última, ela passa por sobre e para além de toda idéia de sucesso ou de fracasso.
Quando chegamos a ver que todos os seres vivos são de uma só e mesma natureza, como pode haver divisão entre nós? Como pode haver falta de harmonia? Somos um com Deus, com Buda, como pode haver separação? O desejo mais profundo de um praticante é estar em contato com a dimensão última. Uma vez que estivermos em contato com a dimensão última, muito naturalmente nossa saúde vai melhorar, seremos bem-sucedidos em nossa prática e em nossa ajuda aos outros e seremos capazes de formar uma comunidade pacífica e alegre que viva em perfeita harmonia. Quando o sucesso não ocorre no grau em que desejaríamos, não vemos isto como um sofrimento.
A oração de um praticante espiritual é muito profunda. O praticante espiritual entende que nem nossa saúde, nem nosso sucesso e nem mesmo nosso relacionamento com nossos entes queridos são as coisas mais importantes. O mais importante para um praticante é ser capaz de transpor o véu do plano material a fim de entrar na dimensão última e ver a interconexão entre nós e todos os outros fenômenos do mundo que nos cerca.
Quando rezamos, precisamos ter sabedoria. Quando a maioria de nós reza, queremos em geral que Deus faça algo por nós ou que conceda isto ou aquilo aos nossos entes queridos. Achamos que, se Deus for capaz de fazer esta coisa que pedimos, então seremos felizes. Mas
toda coisa é composta de milhões de partículas. Enquanto houver nascimento, tem de haver morte. Temos suficiente sabedoria para estabelecer este equilíbrio ou não? Se não tivermos esta capacidade, nossa oração pode ser apenas manifestação de nossa insensatez ou ganância. Dependendo de nossa compreensão da vida, de nossa compaixão, queremos fazer urna lista de trabalhos a serem feitos e pedir a Deus, Buda ou Alá que os executem. Portanto, é preciso olhar em profundidade, para que nossa oração considere o todo e não só as partes.
Quando começamos a rezar, podemos não ser ainda muito bons nisso, mas já seremos capazes de gerar alguma energia. Aos poucos, à medida que continuarmos praticando os preceitos, a concentração e a visão aprofundada, nossas orações vão adquirindo mais força, mais poder.
Corno podemos ter sabedoria em nossas orações? Quando estão presentes as energias da compaixão, da compreensão e da mente alerta é mais provável que surja a sabedoria. Não mudamos apenas a nós individualmente, mas mudamos a consciência coletiva. Esta consciência coletiva é a chave de toda mudança. Larry Dossey, médico americano e autor do livro Healing Words: The Power of Prayer and the Practice of Medicine, disse que nossa consciência coletiva não é como um satélite de comunicações. Não precisamos enviar orações para lugar nenhum, porque Deus é onipresente. Não há necessidade de converter Deus em urna espécie de satélite de telecomunicações no céu. A oração não é limitada pelo tempo ou pelo espaço. O que Dossey chama de Deus onipresente, o budismo chama de consciência coletiva, ou a "mente una". É o depósito de consciência (alayavijnana) em que Buda e nós somos um.
Se houver urna modificação na consciência individual, também haverá modificação na consciência coletiva. Quando há modificação na consciência coletiva, pode ocorrer mudança também na situação individual; pode mudar a situação de urna pessoa querida, que é objeto de nossa oração. Eis a razão por que os budistas dizem que tudo se origina na mente. Nossa mente é urna criação da consciência coletiva. Se quisermos que haja mudança, ternos de voltar à nossa mente. Nossa mente é um centro que produz energia. A partir desta casa de força, que chamamos de mente, podemos modificar o mundo. Nós o modificamos através de urna energia real que nós mesmos criamos. Este é o modo mais eficaz de oração.
Na tradição budista, sabemos que a oração de urna comunidade, de urna sangha, é mais forte do que a oração individual. Um dos principais discípulos de Buda, Mahamaudgalyayana, descobriu que sua mãe estava sofrendo, e isto lhe causava muita tristeza. Buda ensinou-lhe corno se valer da força das orações da sangha. Nós ternos a força de nossa própria aspiração. Nós também podemos enviar nossa energia ao coração do Buda. Mas quando numa sangha, seja de duas, cinco ou cem pessoas, se pratica simultaneamente, enviando energia espiritual, então nossa energia espiritual é aumentada e se torna bem mais eficaz.
Rezamos, mas às vezes estamos numa situação bem difícil e precisamos de uma energia mais forte. A energia individual que podemos enviar já é alguma coisa, mas se tivermos uma sangha, que está disponível e sólida, a energia que podemos enviar juntos será sem dúvida bem maior. Quando a comunidade toda reza conosco, isto pode ser um momento significativo em nossa vida. Somos um da sangha que está rezando. Nossa própria atenção indivisa é uma chave para abrir a porta da realidade última, e a atenção indivisa de nossos amigos na prática é uma chave ainda maior. Quando uma sangha de cem ou de mil pessoas pratica a purificação do corpo, da linguagem e da mente e pratica a união do corpo e da mente para enviar energia, a energia gerada será muito poderosa e capaz de mudar a situação que chamamos de carma, as causas e efeitos de nossas ações.
(Do livro “A energia da oração” – Thich Nhat Hanh)
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