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do Ven. Thich Nhat Hanh
A Ordem Interser
A palavra tiep significa "estar em contato com" e "continuar." Hien quer dizer "perceber" e "fazer aqui e agora." Para entender melhor o espírito da Ordem Tiep Hien, é útil começar examinando estas quatro expressões.
Com o que nós estamos em contato? A resposta é a realidade, a realidade do mundo e a realidade da mente. Estar em contato com a mente significa estar atento aos processos de nossa vida interior - sentimentos, percepções, formações mentais e também redescobrir nossa verdadeira mente que é a fonte de entendimento e compaixão. Entrar em contato com a verdadeira mente é como cavar profundamente na terra e alcançar uma fonte escondida que enche nosso poço com água fresca. Quando descobrirmos nossa verdadeira mente, ficaremos cheios de entendimento e compaixão que nos nutre e também àqueles ao nosso redor. Estar em contato com a verdadeira mente é estar em contato com Budas e bodisatvas, seres iluminados que nos mostram o caminho do entendimento, paz e felicidade.
Estar em contato com a realidade do mundo significa estar em contato com tudo o que está ao redor nos reinos animal, vegetal e mineral. Se quisermos entrar em contato, temos que sair de nossa concha e olhar claramente e profundamente para as maravilhas de vida - os flocos de neve, o luar, as flores bonitas - e também o sofrimento - fome, doença, tortura e opressão. Transbordando de entendimento e compaixão, podemos apreciar as maravilhas de vida e, ao mesmo tempo, agir com firme resolução para aliviar o sofrimento. Muitas pessoas distinguem entre o mundo interno de nossa mente e o mundo exterior, mas estes mundos não estão separados. Eles pertencem à mesma realidade. As idéias de dentro e fora são úteis na vida cotidiana, mas podem se tornar um obstáculo que nos impede de experimentar a realidade última. Se olharmos profundamente em nossa mente, veremos o mundo profundamente ao mesmo tempo. Se nós entendermos o mundo, entenderemos nossa mente. Isto é chamado "a unidade entre mente e mundo”.
O Cristianismo moderno usa as idéias de teologia vertical e horizontal. Vida espiritual é a dimensão vertical de estar em contato com Deus, enquanto vida social é a dimensão horizontal de estar em contato com seres humanos. No Budismo, há pessoas que também pensam desse modo. Eles falam sobre o nível mais alto de praticar o Caminho do Buda e o nível mais baixo de ajudar os seres vivos. Mas esta compreensão não está de acordo com o verdadeiro espírito do Budismo que ensina que a natureza da iluminação, é inata a todo ser e não só a uma entidade transcendental. Assim, no Budismo o vertical e o horizontal são um. Se nós penetramos no horizontal, achamos o vertical, e vice-versa. Este é o significado de "estar em contato com".
A seguir vem o conceito de continuação. Tiep significa amarrar dois fios para fazer um fio mais longo. Significa estender e perpetuar a carreira de iluminação que foi iniciada e nutrida pelos Budas e bodisatvas que nos precederam. É útil se lembrar que a palavra "o Buda" quer dizer uma pessoa que está desperta. A palavra "bodisatva" também significa uma pessoa iluminada. O caminho de iluminação que foi iniciado pelos Budas e bodisatvas deve ser continuado, e esta é a responsabilidade de todos nós que empreendemos a prática do Budismo. Semear as sementes de iluminação e tomar um grande cuidado com a árvore de iluminação são o significado de tiep, "continuar".
O terceiro conceito é "perceber" ou tomar consciência. Hien significa não habitar ou ser capturado no mundo de doutrinas e idéias, mas trazer e expressar nossos insghts da vida real. Idéias sobre entendimento e compaixão não são entendimento e compaixão. Entendimento e compaixão devem ser reais em nossas vidas. Eles devem ser vistos e devem ser tocados. A real presença do entendimento e compaixão aliviará o sofrimento e causará o nascimento da alegria. Mas perceber não significa só agir. Em primeiro lugar, tomar consciência significa se transformar. Esta transformação cria uma harmonia entre nós mesmos e a natureza, entre nossa própria alegria e a alegria de outros. Uma vez que nós adquirimos contato com a fonte de entendimento e compaixão, esta transformação é percebida e todas nossas ações protegerão naturalmente e aumentarão a vida. Se nós desejarmos compartilhar alegria e felicidade com outros, temos que ter alegria e felicidade dentro de nós mesmos. Se desejarmos compartilhar tranqüilidade e serenidade, deveríamos as perceber primeiro dentro de nós mesmos. Sem uma mente tranqüila e calma, nossas ações só criarão mais dificuldade e destruição no mundo.
A última expressão para examinar é “fazendo aqui e agora." Só o momento presente é real e disponível para nós. A paz que nós desejamos não está em algum futuro distante, mas é algo que nós podemos perceber no momento presente. Praticar Budismo não significa suportar sofrimento agora por causa de paz e liberação no futuro. O propósito da prática é não buscar renascimento em algum paraíso ou Terra do Buda depois da morte. O propósito é ter paz para nós mesmos e os outros agora mesmo, enquanto estamos vivos e respirando.
Os meios e os fins não podem ser separados. Bodisatvas cuidam das causas, enquanto as pessoas comuns se preocupam mais com efeitos, porque bodisatvas vêem que causa e efeito são um. Meios são fins neles mesmos. Uma pessoa iluminada nunca diz: "Este é só um meio." Baseado no insight que meios são fins, todas as atividades e práticas deveriam ser realizadas em plena consciência e pacificamente. Ao sentar, caminhar, limpar, trabalhar ou servir, deveríamos sentir paz dentro de nós mesmos. O objetivo da meditação sentada é primeiro estar calmo e desperto durante a meditação sentada. Trabalhar para ajudar os famintos ou os doentes significa estar calmo e amoroso durante aquele trabalho. Quando nós praticarmos, não esperamos que a prática retorne recompensas grandes no futuro, mesmo o nirvana, a Terra Pura, iluminação. O segredo do Budismo é estar desperto aqui e agora. Não há nenhum caminho para a paz; a paz é o caminho. Não há nenhum caminho para a iluminação; iluminação é o caminho. Não há nenhum caminho para a liberação; liberação é o caminho.
Até agora, nós examinamos os significados das palavras "tiep" e "hien." Procurando uma palavra ou frase para expressar o significado de Tiep Hien, a palavra “Interser" foi proposta. É uma tradução de um termo chinês achada no ensinamento do Avatamsaka Sutra. Eu espero que esta palavra recentemente inventada seja adotada amplamente em um futuro próximo.
Membros da Ordem do Interser se comprometem a observar e praticar os Quatorze Treinamentos de Plena Atenção. Nos sutras, o Buda usou freqüentemente a palavra shila (preceitos) para descrever estes treinamentos, mas ele também usou a palavra shiksha (treinamentos). Este termo posterior é mais consistente com o entendimento budista de como praticar estas diretrizes, e assim eu recentemente comecei a usar "treinamentos de plena atenção” em vez de "preceitos”. Treinamentos de Plena Atenção são práticas, não proibições.
Eles não restringem nossa liberdade. Eles nos protegem, garantem nossa liberdade e evitam que sejamos enredados em dificuldades e confusão. Quando falharmos, nos erguemos e tentamos fazer novamente nosso melhor. Na realidade, nós nunca podemos ter sucesso cem por cento. Os treinamentos de plena atenção são como a Estrela de Norte. Se nós quisermos viajar para o norte, podemos usar a Estrela do Norte para nos guiar, mas nunca esperamos atingir a Estrela de Norte.
Os Treinamentos de Plena Atenção deveriam ser entendidos e praticados em termos do Treinamento Triplo: plena atenção, concentração e insight. Plena atenção conduz à concentração, e concentração conduz ao insight. Os Quatorze Treinamentos de Plena Atenção são uma expressão concreta da plena atenção na vida diária.
De acordo com o Documento de Fundação da Ordem do Interser, "O objetivo da Ordem é atualizar o Budismo estudando, experimentando, e aplicando o Budismo na vida moderna”. Entendimento só pode ser atingido através da experiência direta. Os resultados da prática deveriam ser tangíveis e verificáveis.
O Documento lista quatro princípios como sendo a base da Ordem: desapego de visões, experimentação direta na natureza da origem interdependente através da meditação, pertinência, e meios hábeis. Vamos examinar cada um destes princípios.
1. Desapego de visões: ser apegado significa ser preso a dogmas, preconceitos, hábitos e o que nós consideramos ser a Verdade. O primeiro objetivo da prática é estar livre de todos os apegos, especialmente apegos a visões. Este é o ensinamento mais importante do Budismo.
2. Experimentação direta: O Budismo enfatiza a experiência direta da realidade, não filosofia especulativa. Prática e realização direta, e não pesquisa intelectual geram insight. Nossa própria vida é o instrumento pelo qual nós experimentamos com a verdade.
3. Pertinência: Um ensinamento para gerar entendimento e compaixão, tem que refletir as necessidades das pessoas e a realidade da sociedade. Para fazer isto, tem que obedecer dois critérios: tem que se alinhar com as doutrinas básicas do Budismo, e deve ser verdadeiramente útil e pertinente. Diz-se que há 84.000 portas do Dharma pelas quais se pode entrar no Budismo. Para o Budismo continuar como uma fonte viva de sabedoria e paz deveriam mesmo ser abertas mais portas.
4. Meios hábeis (upaya); meios hábeis consistem em imagens e métodos criados por professores inteligentes para mostrar o Caminho do Buda e guiar as pessoas nos seus esforços para praticar o Caminho em suas circunstâncias particulares. Estes meios são chamados portas do Dharma.
No que se refere a estes quatro princípios, o Documento diz, "O espírito de desapego a visões e o espírito de experimentação direta leva à mente aberta e a compaixão, ambos no reino da percepção da realidade e das relações humanas. O espírito de pertinência e o espírito de meios hábeis levam a capacidade de ser criativo e reconciliar, ambos necessários para o serviço dos seres vivos." Guiado por estes princípios, a Ordem do Interser tem uma atitude aberta a todas as escolas budistas. A Ordem do Interser não considera qualquer sutra ou grupo de sutras como seu texto básico. A inspiração é tirada da essência do Budadharma como achada em todos os sutras. A Ordem não reconhece qualquer arranjo sistemático dos ensinamentos budistas como proposto por várias escolas de Budismo. A Ordem busca perceber o espírito do Dharma dentro do Budismo assim como o desenvolvimento desse espírito ao longo da história da Sangha e os ensinamentos em todas as tradições budistas.
Além disso, o Documento expressa uma vontade para estar aberto e mudar. "A Ordem do Interser rejeita o dogmatismo no modo de ver e na ação. Busca todas as formas de ação que possam reavivar e sustentar o verdadeiro espírito de insight e compaixão na vida. Considera que este espírito é mais importante que qualquer instituição budista ou tradição. Com a aspiração de um bodhisattva, membros da Ordem do Interser buscam se transformar para mudar a sociedade na direção da compaixão e entendimento vivendo uma vida alegre e atenta.” (...)
Os Treinamentos de Plena Atenção budistas são diretrizes para viver todos os dias. A maioria das regras religiosas são proibições que começam com o controle do corpo - não matar, não roubar, e assim sucessivamente. Os Quatorze Treinamentos de Plena Atenção da Ordem do Interser começam com a mente, e os primeiros sete lidam com problemas associados à mente. De acordo com o Buda, "A mente é o rei de todos os dharmas. A mente é a pintora que pinta tudo." Os Quatorze Treinamentos de Plena Atenção refletem o Nobre Caminho Óctuplo, o ensinamento básico tanto na escola Theravada e quanto Mahayana. O Caminho Óctuplo pode ser descrito como o treinamento essencial. O Caminho Óctuplo também começa com a mente - Visão Correta e Pensamento Correto. Nós podemos organizar os Quatorze Treinamentos em três categorias. As primeiras sete com a mente, os próximos dois com a fala, e os últimos cinco com o corpo, embora tenhamos que perceber que esta divisão é arbitrária. A mente é como uma lâmpada de consciência, sempre presente. Os que regularmente recitam e praticam os treinamentos de plena atenção verão isto.
(Traduzido do livro “Interbeing” – Thich Nhat Hanh)
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