Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Ordem Interser (parte III)

 

Eu acredito que o encontro entre o budismo e o Ocidente vai dar origem a algo muito importante. O Ocidente possui vários valores como a ciência, o espírito de investigação livre, a democracia. Se esses valores se encontrarem com o budismo, a humanidade ganhará algo muitíssimo novo e estimulante. (...)

 

O princípio budista de agir e ver as coisas de forma não dualista, se combinado com a maneira ocidental de fazer as coisas, poderá mudar totalmente nosso sistema de vida. O que os budistas norte-americanos estão fazendo é importante para todos nós: trazer o budismo para a civilização ocidental.

 

O budismo não é um só. Os ensinamentos do budismo são muitos. Ao entrar num país ele toma uma nova forma. Quando eu visitei pela primeira vez uma comunidade budista nos Estados Unidos, perguntei a meu acompanhante: - Por favor, mostre-me seu Buda, o Buda americano. A pergunta surpreendeu meu amigo porque ele pensava que Buda fosse universal. Na China existe o Buda Chinês, no Tibete o Buda Tibetano e, também, os ensinamentos diferem. A forma de ensinamento budista neste último país é diferente da dos outros países. Budismo para ser budismo tem que se apropriar da psicologia e cultura da sociedade em que serve. Minha pergunta era muito simples: - Onde está seu bodhisattva? Mostre-me um bodhisattva americano. Meu amigo não soube fazê-lo. (...)

 

Eu gostaria de apresentar a vocês uma forma de budismo que pode ser facilmente aceita aqui no Ocidente. Temos experimentado essa forma de budismo ao longo dos últimos 20 anos e ela cabe muito bem na sociedade moderna.

 

A Ordem Tiep Hien foi fundada no Vietnã durante a guerra. Deriva a Escola Zen de Lin Chi e está em sua 42a geração. É uma forma de budismo engajado, budismo aplicado na vida diária, na sociedade, e não somente em centros de retiro. Tiep Hien são palavras vietnamitas de origem chinesa. Eu gostaria de explicar o seu significado porque se tomará mais fácil compreender o espírito dessa ordem.

 

Tiep quer dizer estar em contato. A noção de budismo engajado já aparece na palavra Tiep. Antes de tudo temos que estar em contato conosco mesmos. No mundo moderno a maioria de nós não quer ficar em contato consigo mesmo. Preferimos nos pôr em contato com outras coisas, como a religião, o esporte, a política ou um livro - queremos esquecer a nós mesmos. Sempre que temos um tempo de lazer convidamos, logo, alguma coisa para entrar em nós, como a televisão, por exemplo; abrindo-nos para que ela venha até nós e nos colonize. Assim, antes de tudo, em contato significa em contato consigo mesmo, a fim de encontrar a fonte da sabedoria, do entendimento, da compaixão em cada um de nós. Estar em contato consigo mesmo é o sentido da meditação; estar consciente do que está acontecendo no seu corpo, nos seus pensamentos, na sua mente. Esse é o primeiro significado de Tiep.

 

Significa também estar em contato com os Budas e bodhisattvas, pessoas cujo pleno entendimento e compaixão são tangíveis, efetivos. Estar em contato consigo mesmo quer dizer estar conectado com a fonte da sabedoria e compaixão. As crianças compreendem que Buda está nelas próprias. No primeiro dia de um retiro que houve em Ojai, na Califórnia, um menino afirmou ser Buda. Eu lhe disse que isso era verdade em parte, pois às vezes ele era às vezes não dependendo do grau em que sua mente estivesse desperta.

 

A segunda parte do significado de Tiep é dar continuidade, fazer algo perdurar. Significa que o caminho para o entendimento e a compaixão, aberto por Buda e bodhisattvas, deve ser continuado, Isso só é possível quando entramos em contato com nosso verdadeiro eu; e isso eqüivale a perfurar o solo até atingir a fonte de água fresca escondida sob a terra para que o poço se inunde dela. Quando entramos em contato com nosso verdadeiro ser, a fonte de sabedoria, entendimento e compaixão jorram como água. Esta é a base de todas as coisas. Estar conectado com nosso verdadeiro ser é necessário para dar continuidade ao caminho iniciado por Buda e bodhisattvas.

 

Hien significa momento presente. Temos que estar no aqui e agora, porque só o presente é real, só no momento presente é que podemos estar vivos. No budismo não praticamos em nome do futuro ou para renascer no paraíso, mas sim para ser paz, compaixão e alegria no momento presente. Hien quer também dizer tornar real, manifestar, realizar. O amor e o entendimento não são apenas conceitos e palavras; são realidades manifestadas em si próprio e na sociedade. É isso que Hien significa.

 

É difícil encontrar, no inglês ou no francês, palavras que transmitam o significado de Tiep Hien. Mas existe um termo no suttra Avatamsaka que transmite bem o espírito dessa palavra. É o termo interser, isto é, ser mutuamente. Interser é uma palavra nova, e espero que seja incorporada às palavras dos dicionários. Nós já falamos anteriormente acerca do todo contido no um e do um contido no todo. Numa folha de papel podemos ver o todo: a nuvem, a floresta, o lenhador. Eu sou; portanto, você é. Você é; portanto, eu sou. Esse é o significado da palavra interser. Nós não somos, nós intersomos. (...)

 

Os preceitos geralmente começam com advertências relativas ao corpo, como não mate. Os preceitos da Tiep Hien aparecem, de certa forma, em ordem inversa - os que dizem respeito à mente vêm antes. No budismo a mente é a raiz de tudo. Os preceitos da Ordem de Interser são os seguintes (*):

 

DÉCIMO PRIMEIRO - Não viva uma vocação que seja prejudicial à humanidade e à natureza. Não invista em companhias que privem outros da chance de viver. Escolha uma vocação que ajude a realizar seu ideal de compaixão.

 

Este é um preceito duro de observar. Se você tem bastante sorte em ter uma vocação que o ajude a realizar seu ideal de compaixão, ainda assim você precisa entender mais profundamente. Se sou um professor, fico contente com meu trabalho de ajudar as crianças; fico contente de não ser um açougueiro que abate bois e porcos. Contudo, o filho e a filha do açougueiro vêm à minha aula e eu os ensino. Eles tiram proveito da minha correta subsistência. Meu filho e minha filha comem da carne que o açougueiro prepara. Um elo nos liga. Não posso dizer que minha subsistência é perfeitamente correta. Pode não ser. Na observação deste preceito está implícito achar meios de realizar uma subsistência coletiva.

 

Você pode tentar seguir uma dieta vegetariana para diminuir o abate de animais, mas não pode evitar completamente a matança. Ao beber um copo d'água você mata muitos ínfimos seres. Mesmo em seu prato de vegetais existem muitos deles, fervidos e fritos. Eu estou consciente de que meu prato vegetariano não é totalmente vegetariano, e de que nem meu mestre, o Buda, poderia evitá-lo se estivesse aqui. O problema é se estamos ou não determinados a seguir na direção da compaixão. Se estamos, podemos com isso reduzir o sofrimento ao mínimo? Se perco minha direção, tenho que olhar para a estrela do Norte e sigo para o Norte. Isso não quer dizer que eu espere chegar até a estrela do Norte. Eu apenas sigo naquela direção.

 

DÉCIMO SEGUNDO - Não mate. Não deixe que os outros matem. Por todos os meios possíveis defenda a vida e evite a guerra.

 

O orçamento e os gastos em defesa nos países ocidentais são enormes. Estudos demonstram que se a corrida armamentista parasse, o dinheiro seria mais do que suficiente para acabar com a pobreza, a fome, o analfabetismo e muitas doenças no mundo. Este preceito não é aplicado somente aos seres humanos, mas a todos os seres vivos. Como vimos antes, ninguém pode observar este preceito com perfeição; porém sua essência é respeitar a vida, fazer o que está a nosso alcance para protegê-la. Isto quer dizer não matar nem deixar que outros matem. É difícil. Aqueles que tentam observar este preceito devem estar trabalhando pela paz, para que eles mesmos tenham paz. Impedir a guerra é melhor do que protestar contra ela. Protestar significa que já é tarde, que ela já teve início.

 

DÉCIMO TERCEIRO - Não possua nada que deveria pertencer a outros. Respeite a propriedade alheia; mas impeça que outros se enriqueçam através do sofrimento alheio.

 

Conscientizando-nos do sofrimento causado pela injustiça social, o décimo terceiro preceito nos incita a trabalhar por uma sociedade mais viável. Este preceito é ligado ao décimo quarto (a conscientização do sofrimento), ao quinto (modo de viver), ao décimo primeiro (subsistência correta) e ao décimo segundo (proteção da vida).

 

Para compreender este preceito em profundidade, precisamos meditar também sobre esses quatro preceitos a que acabamos de nos referir. Desenvolver meios de impedir que outros enriqueçam à custa do sofrimento humano e do sofrimento de outros seres é dever dos legisladores e políticos. Porém, cada um de nós pode agir nesse sentido. Estando próximos de pessoas oprimidas podemos, de certo modo, ajudá-las a proteger seu direito à vida e a defenderem-se contra a opressão e exploração. Não podemos deixar que pessoas se enriqueçam do sofrimento humano e de outros seres. Como comunidade devemos impedir isso. Temos que considerar o problema de como trabalhar pela justiça em nossa própria cidade. Os votos do bodhisattva - de ajudar todos os seres vivos - são extensos. Cada um de nós pode fazer um voto de sentar-se em seu barco de salvamento.

 

DÉCIMO QUARTO - Não maltrate seu corpo. Aprenda a tratá-lo com respeito. Não encare seu corpo como um simples instrumento. Preserve energia vital- sexo, respiração, espírito - para a auto-realização. A expressão sexual não deve se manifestar quando não há amor ou compromisso. Nos relacionamentos sexuais esteja consciente do sofrimento futuro que poderá causar a outros. Preserve a felicidade dos demais; respeite os direitos e os compromissos alheios. Esteja inteiramente cônscio da responsabilidade de trazer novas vidas ao mundo. Medite no mundo para o qual você está trazendo novos seres.

 

Você pode ter a impressão de que este preceito desencoraja ter filhos; mas não é bem assim. Ele apenas nos recomenda a tomar consciência do que estamos fazendo. Este mundo é suficientemente seguro para pôr mais crianças nele? Se você quer pôr mais crianças no mundo, faça então alguma coisa pelo mundo. Este preceito tem a ver com o celibato. Tradicionalmente os monges budistas eram celibatários por, pelo menos, três motivos.

 

O primeiro é que aos monges do tempo de Buda era recomendado praticar meditação a maior parte do dia. Eles tinham que estar em contato com o povo da cidade para ensinar-lhe o Dharma e para pedir comida. Se tivesse que sustentar uma família, não seria possível ao monge cumprir com seus deveres.

 

A segunda razão é que a energia sexual tinha que ser preservada para a meditação. Consta nas tradições religiosas e médicas da Ásia que o ser humano tem três fontes de energia: sexo, respiração e espírito. Sexual é a energia que você emprega numa relação de sexo. Energia respiratória é a que você emprega quando fala muito e respira pouco. Energia espiritual é a que você gasta quando se preocupa demais e não dorme direito. Se você gasta essas três fontes de energia, seu corpo não tem suficiente força para realizar o caminho e penetrar profundamente a realidade. Os monges budistas observavam o celibato não por advertência moral, mas para a conservação da energia. Quem já provou um longo período de abstinência sabe o quanto é importante preservar essas três fontes de energia.

 

A terceira razão pela qual os monges budistas observavam o celibato é a questão do sofrimento. Naquele tempo - e ainda hoje - vê-se na Índia muita criança sem comer, muita criança doente sem atendimento médico; e uma mulher pode dar à luz 10, 12 crianças, sem ter a possibilidade de alimentar sequer 2 ou 3. Vida é sofrimento: esta é a terceira verdade do budismo. Pôr uma criança no mundo é uma grande responsabilidade. Se você é rico, talvez possa fazê-lo sem maiores problemas. Mas se você é pobre, toma-se um problema de verdade. Renascer significa antes de tudo renascer em seus filhos. Eles são uma continuação de você. Neles você renasce. E continua o ciclo de sofrimentos. Consciente de que em sua sociedade ter mais crianças era fazê-las sofrer, Buda aconselhou os monges a não terem filhos. Acho que ao longo dos últimos 2.500 anos os monges budistas, em vários países, ajudaram a frear a taxa demográfica. E isso é muito importante.

 

O décimo quarto preceito nos aconselha a respeitar nosso próprio corpo e a conservar nossa energia para a realização do caminho. Não apenas a meditação, mas qualquer tipo de esforço no sentido de mudar o mundo requer energia. Devíamos cuidar bem de nós mesmos.

 

Em minha opinião, a libertação sexual do Ocidente causou bons resultados, mas, também, causou problemas. Devido aos métodos modernos de controle de natalidade a libertação feminina tem sido algo bem real. Antigamente, tanto na Ásia como na Europa, as jovens tinham grandes problemas e muitas delas suicidavam-se quando ficavam grávidas. Desde que o controle de natalidade foi descoberto, esse tipo de tragédia diminuiu bastante. Mas a libertação sexual causou também muita tensão, muitos aborrecimentos. Acho que parte da depressão que as pessoas sofrem atualmente deve-se a esse fato. Por favor, meditem no problema. É muito importante para a sociedade

ocidental.

 

Se você deseja ter filhos, por favor, faça alguma coisa pelo mundo em que vai trazê-los. Isso fará de você alguém que trabalha pela paz.

 

(*) Nota: Os demais preceitos foram discutidos em um texto anterior

(Do livro “Caminhos Para a Paz Interior – Thich Nhat Hanh - 1987)

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