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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
A Paz Começa Aqui
"Era uma vez um professor que vivia com seus estudantes em um templo. Um dia um estudante perguntou 'querido professor, vamos fazer um piquenique um dia desses?'. O professor respondeu 'Sim, vamos achar um dia para fazermos um piquenique'. Mas eles eram muito ocupados, nunca acharam esse dia. Um ano passou, depois dois, três e mesmo assim não conseguiram fazer um piquenique. Um dia, enquanto caminhavam juntos pela cidade, eles viram um funeral passando. O professor perguntou ao seu aluno 'O que é isso?'. O estudante disse 'Eles estão indo fazer um piquenique. O único piquenique que eles conseguem fazer é quando eles morrem' ".
Eu vivi durante duas guerras do Vietnã e sei o que é a guerra - você nunca sabe se estará vivo esta tarde ou à noite. Existe medo, raiva e desespero. Se você não conseguir lidar com essas coisas, não conseguirá sobreviver. É por isso que a nossa prática é fazer um piquenique aqui e agora, sem esperar. É possível para os israelenses e palestinos fazerem um piquenique para que todos possam aproveitar cada momento? Acho que sim.
O piquenique pode estar acontecendo agora mesmo, neste exato momento. Uma bomba pode explodir hoje, mas, mesmo assim, faremos nosso piquenique. Estamos todos juntos sentados aqui. Não há nada a fazer. Apenas sentir o prazer de estarmos sentados, sem preocupação - por que sentar-se é um prazer. Ouvir alguém falar também é um prazer. Não precisamos aprender nada, passar em nenhuma prova ou ter diploma. Apenas sentamos e aproveitamos a inspiração e a expiração, ouvindo alguém falando sobe paz. Não é minha intenção dar a ninguém idéias sobre a paz; vocês já estão cheios de idéias. Nossa intenção é sermos paz, aqui, nesse presente instante.
Frequentemente, nossos corpos não estão em paz. Podemos aprender a trazer paz para o nosso corpo, aqui e agora. Ele sofre, especialmente durante os tempos de guerra. Sentimos tensão, stress e pressão. Tratamos nosso corpo de maneira bastante dura e ele está cheio de conflitos. O modo como o tratamos o faz sofrer tanto que acabamos não tendo paz. Para trazer a paz para os nossos corpos, permitimos a eles descansar para que possam ter uma chance de se renovar e curar a si mesmos. Podemos fazer isso agora mesmo. Depois de uma ou duas horas, vamos nos sentir muito melhor. Não estamos apenas falando sobre a paz do corpo, estamos trazendo realmente a paz para dentro dele.
Todos nós temos sentimentos de tristeza, dor ou excitação. Nossos sentimentos fluem através de nós como um rio e frequentemente nos dominam. Estando juntos com nossos amigos que sabem como lidar com seus sentimentos e emoções, poderemos aprender também a lidar com os nossos. Em quinze minutos de respiração consciente, podemos começar a saber como lidar com o nosso medo, desespero e raiva; isto é muito importante. Se você não souber lidar com seu corpo e com seus sentimentos de raiva, medo e desespero, você não poderá falar de paz. Lidar bem com eles trará paz e harmonia ao seu corpo, sentimentos e emoções.
Quando estamos dominados, não percebemos as coisas como elas são; desenvolvemos percepções erradas sobre quem somos nós, quem são os outros e sobre como é o mundo. Estas percepções erradas são a base de todas as nossas ações que trazem infelicidade, destruição, medo e raiva. Precisamos ser capazes de lidar com nossas percepções, para que possamos saber quais percepções são corretas e quais incorretas. A maior parte do nosso sofrimento advém de nossas percepções erradas. Precisamos dedicar um tempo para observar profundamente a natureza de nossas percepções para que não sejamos apanhados por elas, pois são a base de todos os nossos sentimentos, emoções e aflições.
Na vida cotidiana, poucas vezes estamos conscientes de nossos sentimentos, percepções e pensamentos. Raramente somos realmente nós mesmos. Frequentemente somos vítimas de nossos sentimentos e percepções; somos como uma folha flutuando no oceano, com as ondas nos puxando pra lá e pra cá. Não somos soberanos de nossa própria situação. É por isso que é tão importante voltar ao o nosso lar, a nós mesmos. Dessa maneira, deixamos de ser dominados pelas circunstâncias. Esta é a prática básica da paz. Se tivermos alguma paz em nosso corpo, em nossas emoções e em nossas percepções poderemos ajudar outras pessoas a encontrar a paz. Mas temos que começar por nós mesmos. Você não poderá ser um instrumento de paz se não tiver paz em si mesmo. Quando você se tornar esse instrumento, também se tornará um instrumento de Deus, de Allah, do Buda e da realidade última. Isso não é tão difícil. Podemos fazê-lo.
Algumas vezes, nos sentimos muito cansados, não temos mais energia e queremos desistir - nossa situação é bastante difícil. Sentimo-nos como se não pudéssemos fazer mais nada. Queremos achar um lugar onde possamos estar protegidos e tomar refúgio em Deus, em Buda ou em Allah. Imagine uma onda que se cansou de subir e descer, pra cima e pra baixo, e que gostaria de buscar refúgio. Existe um refúgio para a onda, que é a água. Se a onda reconhecer que ela é a água e buscar nela o seu refúgio, não terá mais medo de subir e descer. É muito importante que ela saiba que é água e que não precisa buscar a água fora de si mesma.
Talvez você seja uma onda, cansado de subir e descer, de nascer e morrer. Você está procurando algo sólido, seguro e duradouro no qual se refugiar. Se você for uma onda, não precisa buscar pela água. Você é a água, aqui e agora. Deus não existe fora de nós. O absoluto, nosso refúgio, não está fora de nós, está bem aqui, dentro de nós. "Eu descanso em Deus" significa ''Eu tomo refúgio no absoluto". Podemos chamar o absoluto de natureza de Buda, Deus ou Allah; é tudo a mesma coisa.
Quando você descansa em Deus, você não precisa correr, apenas volta ao seu lar, você mesmo, como a onda na água. Se a onda continuar procurando, ela jamais encontrará a água. A única maneira de encontrá-la é voltar à casa de si mesma. Quando ela percebe que é água, encontra a paz. Ela pratica o descanso em Deus aqui e agora. Mesmo que ela continue a subir e descer, está pacificada. Podemos praticar assim - Deus, não como uma entidade separada de nós, mas como o fundamento de nosso ser.
Muitos de nós estamos presos ao ato de se tomar refúgio em uma noção. Pensamos que estamos tomando refúgio no Buda, mas tomamos refúgio em nossa noção de Buda. Pensamos que estamos tomando refúgio em Allah, mas Allah é apenas uma noção na nossa cabeça. É por isso que queremos aqui tomar refúgio no momento presente, na nossa inspiração, na nossa expiração, nos nossos passos. Estas são maneiras muito concretas de tomar refúgio. Inspirando, tomo refúgio na minha inspiração. Sou completamente minha inspiração. Confio na minha inspiração e, junto com ela, eu me torno a paz. Expirando, tomo refúgio na minha expiração, eu me torno minha expiração. Confio em minha expiração e me torno a paz com ela.
Em Plum Village, quando caminhamos, tomamos refúgio em cada passo e entramos em contato com o absoluto em nossos passos. Damos um passo e tomamos refúgio inteiramente nele. O absoluto se torna disponível para nós naquele momento. Você tem que trazer cem por cento do seu corpo e do seu espírito ao tomar refúgio nos seus passos.
Na nossa vida diária, temos o hábito de correr. Buscamos paz, sucesso, amor, Deus - estamos sempre correndo - e nossos passos são o meio para fugirmos do momento presente. Deus está disponível somente no momento presente. Dar um passo e tomar refúgio nele significa parar de correr. Para aqueles que estão acostumados a estar sempre correndo é uma revolução dar um passo e parar de correr. Damos um passo e, se soubermos como dar este passo, a paz e Deus estarão disponíveis no momento em que tocarmos a terra com nossos pés.
Enquanto caminho devagar, quando inspiro, dou um passo e quando expiro, dou outro passo. Eu me entrego inteiramente ao dar o passo enquanto inspiro. Tomo refúgio inteiramente no passo, encontro o absoluto, Deus e a vida, por que a vida é disponível apenas no momento presente. Estas são coisas bastante simples, mas nunca encontramos tempo para percebê-las. O passado já se foi, o futuro não está ainda aqui, e há somente um momento no qual podemos estar realmente vivos: o momento presente. É por isso que é tão importante tomar refúgio na nossa inspiração e no nosso passo, por que eles são os únicos meios para nos levar ao nosso lar no momento presente, onde podemos tocar a vida e encontrá-la profundamente.
Imagine que você está em um avião, voando para Nova Iorque. Uma vez sentado lá dentro, você pensa "Tenho que me sentar quieto durante seis horas até chegar lá". Sentado no avião, você pensa somente em Nova Iorque, não é capaz de viver os momentos que lhe são oferecidos agora. Mas é possível, para você, caminhar no avião de tal modo que você desfrute de cada momento de paz. Você não precisa chegar em Nova Iorque para estar em paz e feliz. Ao longo de sua caminhada, cada passo traz a você felicidade e você chega em cada momento. Chegar significa chegar em algum lugar. Quando você pratica a meditação andando você chega em cada momento - você chega ao destino da vida. O momento presente é um destino. Inspirando, dou um passo, outro passo e digo a mim mesmo "eu cheguei, eu cheguei".
"Eu cheguei" é a nossa prática em Plum Village. Quando você inspira, toma refúgio em sua inspiração, e diz "Eu cheguei". Quando você dá um passo, você toma refúgio no seu passo e diz "Eu cheguei". Isto não é uma declaração para si mesmo ou pra outra pessoa. "Eu cheguei" significa: eu parei de correr. Eu cheguei no momento presente, por que somente o momento presente é vida. Quando eu inspiro e tomo refugio em minha inspiração, toco a vida profundamente. Quando dou um passo e tomo refúgio inteiramente no meu passo, também toco a vida profundamente e, desse modo, paro de correr. Parar de correr é uma prática muito importante. Corremos durante toda a nossa vida. Acreditamos que a paz, a felicidade e o sucesso estão presentes em algum lugar e em algum tempo. Não sabemos que tudo - paz, felicidade e estabilidade - deveriam ser procurados no aqui e agora. Este é o endereço da vida - a interseção do aqui e do agora.
Isto parece ser fácil, e todos podem fazê-lo, mas precisa de algum treinamento. A prática de parar é crucial. Como eu paro? Paramos através de nossa inspiração, de nossa expiração e de nossos passos. É por isso que a nossa prática básica consiste em respirar conscientemente, andar com plena consciência. Se você dominar estas práticas, então você poderá praticar o comer consciente, o beber consciente, o cozinhar consciente e o dirigir carros consciente - e você sempre estará em paz. Não devemos ser como o professor e seus alunos que estavam sempre correndo até virem um funeral e perceberem que este era o piquenique final. Temos que desfrutar o nosso piquenique aqui mesmo, neste exato momento. E temos os meios de fazê-lo. Se você acha muito difícil inspirar ou dar um passo com plena consciência, você está errado. São coisas bastante agradáveis. Você pode tocar a paz apenas pela inspiração ou com um passo. Você pode tocar a semente de paz que existe dentro de você e remover a tensão e o conflito em seu corpo, em seus sentimentos e em suas percepções.
Nossa prática é a prática da plena consciência - ao respirar, caminhar, comer, lavar os pratos e ao cozinhar - sempre habitando no aqui e no agora. e não permitindo sermos expulsos pelas nossas preocupações, projetos para o futuro ou remorsos em relação ao passado. Temos que reivindicar a nossa liberdade, por que nós a perdemos. Fomos apanhados pelo nosso passado e pelas preocupações com o futuro. Não temos capacidade de estar aqui e agora tocando a vida. É por isso que é muito importante aprender a arte de tornar-se paz aqui e agora.
A presença de uma comunidade com a qual praticar torna isso mais fácil. À sua esquerda há um amigo que sabe como inspirar e expirar e tocar o momento presente. À sua direita está outro amigo que sabe dar um passo e habitar pacificamente e com alegria no presente momento. Atrás de você há uma irmã e à sua frente um irmão que podem fazer o mesmo. Você está cercado de pessoas que dominam a arte de viver no momento presente, a arte de parar, de tocar as sementes de paz e alegria que estão em cada um de nós, a arte de se tornar um instrumento de paz para as pessoas que nos cercam.
"Eu cheguei" é uma prática, não uma afirmação ou uma declaração. Eu cheguei no aqui e agora e posso tocar a vida profundamente com todas as suas maravilhas. A chuva é uma maravilha, o brilho do sol é uma maravilha; as árvores são maravilhosas; os rostos das crianças são maravilhas. Existem tantas maravilhas da vida à nossa volta e dentro de nós. Nossos olhos são maravilhas - precisamos apenas abri-los para ver todo o tipo de cores e formas. Nosso coração é uma maravilha - se o nosso coração parar de bater, nada poderá continuar.
Quando vamos ao nosso lar no presente momento, tocamos as maravilhas da vida que estão dentro de nós e em torno de nós. Devemos apenas apreciar - não precisamos esperar por amanhã para encontrar a paz e a alegria. Quando você inspirar diga "eu cheguei" e você saberá se você chegou ou não, se você está correndo ou não. Mesmo sentando-se pacificamente, você poderá estar correndo em sua mente. Quando você sentir que chegou, se sentirá muito feliz. Você deve contar pros seus amigos "querido amigo, eu realmente cheguei". Esta é uma boa notícia.
Quando você dá um passo, é maravilhoso chegar em cada momento. É por isso que não conversamos enquanto estamos caminhando. Se estamos ocupados conversando, como poderemos chegar? Se precisamos dizer algo, podemos parar e dizê-lo completamente presentes. Fazemos uma coisa de cada vez. Depois de terminada a conversa, podemos retornar à caminhada e desfrutar de nossos passos. Se você souber como caminhar dessa maneira, estará sempre no Reino de Deus, na presença de Allah, na Terra Pura do Buda, assim como a onda está sempre no reino da água. Eu tenho o prazer de caminhar no reino de Deus todos os dias. É algo que você pode fazer agora mesmo - não é algo na qual se ter esperança. Por que me privar dessa alegria? É algo que cura e nutre bastante. Meus amigos podem fazer isso também, se eles realmente quiserem. Se tudo o que vocês quiserem da vida for um diploma ou um grande salário, isso toma tempo, mas se você quiser desfrutar de uma caminhada no Reino de Deus, você poderá fazê-lo agora - assim que você conseguir voltar ao lar do momento presente.
Quando você inspirar, você pode dizer "Eu cheguei". Quando você expirar, você pode dizer "estou em casa". Nosso verdadeiro lar é o aqui e agora. Somente no aqui e agora é que encontramos nosso real refúgio. No presente podemos estar em contato com nossos ancestrais, com Deus,com nossos filhos e netos. Estas coisas já estão disponíveis no momento presente. Ele é seu verdadeiro lar. Se você se sente em casa, então você não precisa mais correr e sua prática foi bem sucedida. Se você ainda sente que precisa correr, então você ainda não chegou, não está em casa ainda. A sua casa não é apenas o Oriente Médio, a Holanda, Inglaterra ou a América. Sua casa é aqui - aqui significa vida. Todas as maravilhas da vida são disponíveis aqui e agora, e isso traz muita alegria, paz e felicidade.
(Trecho do Livro de Thich Nhat Hanh "Peace Begins Here: Palestinians and Israelis Listening to Each Other)
(Tradução Samuel Cavalcante)
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