Sangha
Virtual
Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
A paz está na esquina
Durante oito anos, na primeira semana de abril, palestinos e israelenses andaram juntos de Tel-aviv para Jerusalém passando por cidades e assentamentos árabes e israelenses, em silêncio e consciência, declarando compromisso de escuta profunda e não violência. Esta Caminhada era organizada por grupos de meditação com a intenção de dar a oportunidade para palestinos e israelenses de andarem juntos, desenvolver diálogo e auto-introspecção, inspirada pelas antigas tradições que guiaram pessoas como Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr.
O que eu experimentei no último dia de Caminhada era muito do espírito de paz e coexistência, de calma e serenidade criada pela Caminhada no meio da atmosfera de insanidade e violência que nos cerca.
Eu aderi à Caminhada com um grupo de palestinos e israelenses que praticam meditação e plena consciência de acordo com a tradição de Thich Nhat Hanh, monge budista e trabalhador pela paz. (...)
No início da tarde eu estacionei meu carro no ponto de encontro para a Caminhada. Quando cheguei ao portão de Jaffa, me encontrei em frente a um senhor idoso árabe que estava agitado e trocando insultos com um religioso judeu idoso que estava em pé num ponto de ônibus a alguns metros de distância. Alguns policiais da polícia de fronteira estavam tentando acalmá-los, caso contrário poderia se tornar uma briga. Eu fiquei ao lado do árabe, falei com ele calmamente e pedi a ele que sentasse sem reagir às provocações do outro. Eu estava bem impressionada com a postura dos policiais. Eles pareciam respeitar ambos os lados. O ônibus chegou e o homem judeu embarcou no ônibus e a situação pareceu serenar.
Então uma mulher judia que estava na fila e não pegou o ônibus, começou a insultar o árabe que reagiu imediatamente. Os policiais já tinham ido e eu estava sozinha tentando acalmar a situação.
Eu dei minha atenção ao árabe, que teria ficado quieto se não tivesse sido continuamente provocado pela mulher. Ela parou um policial que passava, disse algo a eles, e ele se dirigiu ao árabe. Eu expliquei ao policial o que estava acontecendo e ele voltou à mulher. Eu fiquei muito feliz que todos os policiais nesta situação agiram calmamente e ajudaram a restaurar a paz. Então uma mulher palestina no seu caminho ao portão de Jaffa entrou na cena. Ela concluiu que o velho árabe estava sob “ataque” e correu para resgatá-lo. Ela gritou alguns insultos para a mulher judia que estava começando a se acalmar e a situação esquentou de novo. Toda minha atenção estava agora focada nela. Senti que ela era uma bomba pronta para explodir. Tentei explicar a ela o que estava acontecendo, mas ela estava furiosa comigo, gritando do alto de sua raiva, seu desespero e sua dor.
Esta é a Palestina acusando Israel. Neste momento eu representava Israel para ela. Esta situação toda é maior que nós duas e toma proporções acima do nosso presente encontro. Ela grita do alto de sua dor sobre o que está acontecendo nos territórios ocupados. Ela tem amigos e família lá e diz que nossos soldados são criminosos de guerra. Ela está convicta que queremos matá-los todos. Porque os odiamos tanto? Eles não são responsáveis pelo Holocausto, porque deveriam pagar o preço? Ela me fala sobre os refugiados e seu constante sofrimento, pelo qual ela sente que somos responsáveis. Apontando para a mulher judia, me garante que ela seria tratada com honra, como um ser humano em um país árabe, e veja como ela se comporta com palestinos agora. Isso continuou; ela gritava e soltava seu ódio contra Israel em mim.
Não tentei discutir com ela. Não mostrei nenhuma reação para nenhuma de suas acusações. Senti grande compaixão e uma necessidade intensa de ouvi-la, apenas ouvi-la. Minha paciência era nutrida pelo entendimento que por trás desse ódio sufocante estava um grande sofrimento e dor agravada pela presente situação de guerra. A dor deve se expressar de algum modo para a cura ter vez.
Eu estava pronta para ouvir o que me pareceu como as piores acusações, distorções e insultos, sem reagir. Estava consciente que o que reforçava minha força naquele momento era que eu não tinha nenhuma dúvida que o sofrimento e dor do povo israelense não era menos real ou legítimo. Não me deixei tentar ou cair na armadilha da culpa ou raiva. Eu estava triste pela tragédia em ambos os lados. Para mim não é uma questão de quem está certo ou errado. Me senti profundamente calma e pacífica no meu interior. Sabia que era o único jeito de acalmar sua fúria. Eu a deixei se expressar por um bom tempo sem interrupção.
Como ela continuava a gritar comigo, eu disse que ela não tinha necessidade de falar tão alto porque eu a estava ouvindo com toda a minha atenção. Ao mesmo tempo eu fazia carinho no seu braço. Ela me deixou fazer isso e progressivamente abaixou o tom de sua voz enquanto continuava a deixar seu desespero transbordar. Ela me disse: “Você entende porque alguns de nós vêm e cometem suicídio entre vocês? Vocês de qualquer jeito nos matariam, portanto porque não matar vocês ao mesmo tempo? Ela até mencionou a possibilidade de vir e se explodir por desespero.
Eu disse a ela suavemente que não queria que ela morresse. Ninguém deveria tomar essa decisão. Ambos sofremos dos dois lados. Ela continuou clamando que os sionistas apenas querem se livrar dos palestinos. Eu disse a ela: “Veja, eu sou uma sionista e não quero me livrar de você. Eu desejo que possamos viver juntas como boas vizinhas.” Ela me ouviu!
Então ela me pediu para doar dinheiro para comprar cartões de telefone para palestinos que precisavam. Eu dei a ela algum dinheiro. Neste ponto a conversa estava bem normal entre nós. Ela não estava mais gritando, e era capaz de me ouvir.
Ela estava quase calma quando eu percebi as pessoas da Caminhada se aproximando lentamente. Eles estavam em linha, centenas, um depois do outro andando em silêncio, lentamente, quietamente, conscientes de cada passo, criando uma atmosfera de paz e segurança ao seu redor. Eles estavam muito presentes. Irradiavam calma e ternura.
Eu apontei para eles e expliquei que a razão de eu estar ali, era me juntar a uma caminhada de paz na qual palestinos e israelenses estavam juntos. Disse a ela sobre a caminhada, sua mensagem de coexistência e paz, paz a cada passo, aqui e agora.
Eu sugeri que ela viesse para a caminhada comigo. Ela hesitou e rejeitou minha oferta. Naquele momento eles nos alcançaram. Muitas pessoas que eu conhecia apertaram minha mão ternamente enquanto passavam. Uma jovem muito ativa no grupo de trabalho para reconciliação dos dois povos, se aproximou dela e deu um beijo. Parecia que se conheciam.
Percebi que ela estava muito emocionada pala Caminhada e a atmosfera que irradiava. Ela me parecia muito mais calma, nem de longe lembrava aquela mulher furiosa que eu havia conhecido alguns minutos antes. O final da linha passou por nós e eu queria me juntar a ela. Novamente eu a convidei e novamente ela não aceitou. Eu disse a ela que eu entendia e respeitava sua decisão. Antes de ir eu disse a ela “Estou certa que algum dia teremos sucesso em construir paz entre nós.” Ela respondeu e disse “Eu também”. Então para minha surpresa total, ela veio perto de mim e me beijou em uma das bochechas! Ela andou ao lado da Caminhada por um tempo. Ela me disse que gostou da Caminhada, tinha feito ela se sentir bem e que seu humor estava muito melhor agora. Eu estava muito emocionada. Eu me senti plena devido a este encontro, especialmente por este final não esperado.
A paz estava ali perto da esquina. Eu não a deixei escapar!
Eu estava consciente que um momento intenso de reconciliação real tinha acontecido. As grossas paredes de seu ódio foram derrubadas permitindo que ela expressasse o que estava nas profundezas de seu coração.
Me beijar foi um milagre! Em um curto período de tempo, sua energia de ódio e morte se transformaram. Não seu o quanto rápido ela voltou ao seu estado inicial de raiva ou o quanto ela permaneceu calma. Sei que essa profunda transformação foi real, não importando o que aconteceu depois, deixará um traço e uma memória que não podem desaparecer. Uma semente de paz foi plantada no seu coração. Precisamos plantar muitas mais e regá-las diligentemente.
(Marion Pargamin pratica na Sangha de Jerusalém – publicado na revista Mindfulness Bell verão 2002)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)
Pergunta: Minha pergunta é sobre força. Sou do exército de Israel. Às vezes precisamos usar força para prevenir um ato que irá causar sofrimento e mesmo assim a força causa sofrimento para outra pessoa. Minha questão é: a força pode ser usada?
Thich Nhat Hanh: Se você tiver entendimento e compaixão em você, então o que chamamos força, o que chamamos força militar, pode ajudar a prevenir algo, alcançar algo. Mas isto não deveria evitar que vejamos que há outras formas de força que podem ser ainda mais poderosas. Não sabemos como reconhecer e fazer uso delas, portanto temos a tendência de apelar para a força militar. Há também a força espiritual e a força da educação. Estas forças podem ser muito mais seguras de usar. Como não fomos treinados para usar essas forças, apenas pensamos em usar a força militar.
Suponha que há duas pessoas, ambas cheias de raiva, desentendimento e ódio. Como podem essas pessoas falar entre si, mesmo se estão negociando a paz? Este é o problema central – não se pode trazer pessoas para se sentar em volta da mesa se não há paz no interior delas. Primeiramente você tem que ajudá-las a se acalmar e começar a ver claramente que nós, como também outras pessoas, sofremos. Deveríamos ter compaixão por nós mesmos assim como por eles e seus filhos. Isto é possível. Como seres humanos temos sofrido. E temos a capacidade de entender o sofrimento de outras pessoas.
As dimensões espiritual e educacional podem ser muito poderosas e deveríamos usá-las como instrumentos, como ferramentas para paz. Suponha que você viva em um bairro onde dezenas de israelenses vivam pacificamente com palestinos. Vocês não tem nenhum problema. Vocês dividem o mesmo ambiente, podem ir às compras no mesmo lugar, podem pegar o mesmo ônibus. Você não vê suas diferenças como obstáculos, mas de fato como enriquecedores. Você é um israelense e ela uma palestina e vocês se conhecem no mercado e sorriem um para o outro. Como é bonito, como isso é maravilhoso. Você a ajuda e ela te ajuda. Outros palestinos e israelenses deveriam ver essa imagem. Se você for escritor pode levar essa imagem para muitas pessoas fora de seu grupo. Se é um cineasta, porque não oferecer essa imagem de coexistência pacífica para o mundo? Você pode mostrar na TV para demonstrar que é possível para palestinos e israelenses viverem pacificamente e felizes juntos.
Este é o trabalho da educação. Há muitas pessoas na mídia de massa que estão prontas para te ajudar a levar essa imagem, esta mensagem ao mundo. Isto é muito poderoso, mais poderoso que uma bomba, um foguete ou uma arma e isto faz as pessoas acreditarem a que a paz é possível.
Se você tem energia suficiente e paz interior, então esse tipo de educação interior pode ser muito poderoso e você não tem que nunca mais pensar em usar o exército e armas. Se o exército sabe como praticar, saberá como agir de tal modo que não cause danos. O exército pode resgatar pessoas, o exército pode garantir a paz e a ordem. É como uma faca. Você pode usar a faca para matar ou pode usar a faca para cortar vegetais. É possível para os soldados praticar não violência e entendimento. Não os excluímos da prática de nossa Sangha. Não dizemos: “Você é um soldado, não pode entrar em nossa sala de meditação.” De fato, você precisa vir para a sala de meditação de forma a saber como usar melhor o exército. Portanto, por favor, não limite sua pergunta. Faça sua questão ampla – abrace toda a situação, porque tudo está ligado a tudo mais.
Há muitas coisas que podemos fazer hoje para expandir nosso entendimento, compaixão e paz porque cada pequena parte é útil, é ouro. Quando você dá um passo, se pode desfrutar deste passo, se seu passo pode te trazer mais estabilidade e liberdade, então você estará servindo ao mundo. É com esse tipo de paz e estabilidade que você pode servir. Se você não tem as qualidades da estabilidade, paz e liberdade interior, então não importa o que faça, não poderá ajudar o mundo. Não é uma questão de fazer alguma coisa, e sim de ser paz, ser esperança e ser sólido. Cada ação virá dessa fundação, porque paz, estabilidade e liberdade sempre procuram uma maneira de se expressar em ação.
Esta é a dimensão espiritual de nossa realidade. Precisamos que a dimensão espiritual nos resgate de forma que não pensemos apenas no uso da força militar como meio de resolver problemas e acabar com o terrorismo. Como se pode acabar com o terrorismo usando força militar? Os militares não sabem onde os terroristas estão. Eles não podem localizar o terrorismo – ele está no coração. Quanto mais força militar você usa, mais terroristas cria, no seu país e em outros países também.
A questão básica é nossa prática de paz, nossa prática de olhar em profundidade. Primeiramente, precisamos nos permitir acalmar. Sem tranqüilidade e serenidade, nossas emoções, nossa raiva e desespero não irão embora. E não seremos capazes de olhar e ver a natureza da realidade. Acalmar, ficar sereno, é o primeiro passo da meditação. O segundo passo é olhar em profundidade, entender. Do entendimento vem a compaixão. E desta fundação de entendimento e compaixão você poderá ver o que pode fazer e o que deveria evitar. Isto é falado em termos de meditação. A esse respeito, todos temos que praticar meditação – os políticos, os militares, os homens de negócio. Todos temos que praticar acalmar e olhar em profundidade.
(Publicado na revista Mindfulness Bell verão 2002 -Traduzido por Leonardo Dobbin)
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