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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
A quarta nobre verdade – um caminho ético de vida
A Segunda Nobre Verdade mostra-nos o modo de vida que leva ao sofrimento. Entretanto, a Terceira Nobre Verdade lembra-nos de que o bem-estar e a felicidade são possíveis. Há um meio de vida ético que pode nos tirar do sofrimento. Somente se vivermos de forma ética poderemos vivenciar o bem-estar e a felicidade. Este modo de vida é o Nobre Caminho Óctuplo, a Quarta Nobre Verdade. É o caminho que conduz ao bem-estar e é também o caminho da ética. Tais caminhos não podem ser separados. Devido à natureza do interser, não há verdadeiro bem-estar que não leve em conta o bem-estar dos outros.
O Caminho Óctuplo é composto por oito diretrizes sobre como ser e estar no mundo. O Caminho Óctuplo nos leva a perceber, pensar e agir para que possamos ser felizes e gerar mais felicidade no mundo. Não há diferença entre essas duas felicidades. Os oito aspectos do Caminho Óctuplo são: Visão Correta, Pensamento Correto, Fala Correta, Ação Correta, Modo de Vida Correto, Esforço Correto, Plena Atenção Correta e Concentração Correta.
O que queremos dizer com “certo”? Todos almejam o Pensamento Correto, mas o que é isso? Precisamos respirar em plena consciência, sentar e refletir em plena consciência para que o Pensamento Correto e a Fala Correta se manifestem. O Pensamento deve ser verdadeiramente Correto, pois nosso pensamento pode estar errado ainda que acreditemos que esteja certo. Durante a Segunda Guerra Mundial, as decisões tomadas sobre a bomba atômica foram consideradas Pensamento Correto. Mas será que realmente foram decisões corretas?
O que devemos fazer para que nosso pensamento seja correto? O que é a Fala Correta? Que tipo de discurso transforma nossas palavras em Fala Correta? Por “correto” o Buda queria dizer moral e ético. Moralidade e ética podem ser um código de conduta que talvez queiramos aceitar e seguir. Há cinco conjuntos de critérios que podem nos ajudar a decidir se algo é certo ou errado.
O primeiro conjunto de critérios para discernir o certo do errado é ver se algo causa sofrimento ou felicidade. Tudo que gera sofrimento é errado. Tudo que gera felicidade é certo. Este é um conjunto de critérios: dukkha e sukha. Porém, para usarmos esse conjunto de critérios temos que nos lembrar da diferença entre sofrimento e dor. A dor pode ser inevitável, mas não significa que temos que sofrer.
Por exemplo, a separação pode ser dolorosa, mas se você estiver motivado por um forte ideal, uma forte vocação ou uma forte aspiração, conseguirá aceitar a separação para realizar sua aspiração. Quando Sidarta deixou o lar, teve que deixar para trás sua esposa, filho e família, ou seja, deixou tudo para trás para aceitar a dura vida de um asceta. Talvez você aceite deixar sua família e o conforto da vida diária para se engajar em um tipo de vida mais difícil em prol de algo importante. Isso aliviará a dor da separação. Há separação, mas não há sofrimento.
Sofrimento não é algo simples. Às vezes a dor é apenas dor e quando você consegue aceitar a dor, não sofre. Portanto, deve haver alguma diferença entre dor ou falta de conforto de um lado, e sofrimento do outro.
A felicidade também não costuma ser algo simples. Há uma diferença entre felicidade e prazer, da mesma forma em que dor e sofrimento são diferentes. Muitos de nós consideramos o prazer um tipo de felicidade. Se você injetar uma dose de heroína no corpo, sentirá prazer. Porém, alguns de nós não vêem isso como felicidade. Alguns se sentem muito felizes ao ingerirem grandes quantidades de bebidas alcoólicas. Há uma sensação de prazer, mas será que isso é felicidade de verdade? Portanto, pode ser que prazer e felicidade sejam coisas diferentes. Há tipos de prazer que parecem felicidade e é por isso que temos que olhar mais profundamente. Dor não é exatamente sofrimento; pode ser identificado como sofrimento. E prazer é diferente de felicidade; não é exatamente o mesmo que felicidade.
Vamos imaginar que você goste de fazer caminhadas e decida passar um dia inteiro fazendo isso. Você escala montanhas, sente calor e até volta para casa com alguns arranhões. Podemos supor que você sofreu durante a caminhada. Há pessoas que preferem ficar em casa e ver televisão em vez de saírem para caminhar. Entretanto, se você estiver caminhando e se divertindo nas montanhas, talvez pense naqueles que estão sentados em casa vendo um programa de TV após o outro e sinta pena deles. Portanto, quem é feliz: o que saiu para caminhar ou o que assiste aos programas na televisão? Depende.
Algumas pessoas acham que ir à escola é chato e sofrem com isso, mas há crianças e jovens que adoram estudar e encontram a felicidade nos estudos. Portanto, dizer se ir à escola é dukkha ou sukha é algo pessoal. É muito difícil usar o critério de felicidade ou sofrimento para definir se ir à escola é certo ou errado. Portanto, esse conjunto de critérios não basta.
As Quatro Nobres Verdades poderiam ser interpretadas da seguinte forma: tudo o que leva ao sofrimento é errado e tudo o que leva à cessação do sofrimento é certo. Entretanto, precisamos olhar mais profundamente para a natureza da felicidade e do sofrimento para compreendermos melhor. É por isso que dispomos de outro conjunto de critérios, denominado “benéfico ou prejudicial” (ou o que causa bem-estar em oposição ao que é prejudicial). Tudo o que é benéfico a você, à sua saúde, à sua compreensão ou aprendizado é bom, e o que não é benéfico é ruim, é errado. Freqüentar a escola é benéfico. Portanto, esse segundo conjunto de critérios poderia apoiar a escolaridade e o aprendizado.
Ao consumir álcool, você sente prazer. Ao mesmo tempo, você sabe que álcool em excesso lhe prejudicará e, portanto, não é algo benéfico. Esse conjunto de critérios pode ajudá-lo a ver as coisas com mais clareza.
Há formações mentais que descrevemos como benéficas (como alegria, compaixão, perdão, compreensão e amor). Sempre que você toca a semente da compaixão, alegria ou irmandade dentro de si ela se manifesta como formação mental e você fica feliz. Esse tipo de prática ajuda a desenvolver sua alegria e felicidade. Tais formações mentais benéficas também estão presentes em seus entes queridos. Portanto, sempre há maneiras de ajudarmos o outro ao tocarmos coisas benéficas nele, permitindo que essas formações benéficas se manifestem e deixem a outra pessoa feliz. E se essa pessoa ficar feliz, você se beneficiará também. Portanto, de acordo com esse conjunto de critérios, o que é benéfico ou prejudicial determina o que é certo e o que é errado.
Há outro conjunto de critérios que podemos usar e que se baseia em estar iludido ou desperto. Quando não há clareza mental, você não está desperto; seu julgamento é errôneo, você toma decisões erradas e suas ações são inábeis. Imagine que você está sob influência de drogas ou álcool. Sua visão não será clara; você será facilmente iludido; e não importa a decisão que tomar naquele momento, jamais acertará.
Suponha que você esteja muito bravo com seu filho. Nessa hora, sua raiva bloqueia a lucidez, a clareza. Se nesse momento você decidir redigir um documento dizendo que não quer que seu filho se beneficie de sua herança, sua decisão não será correta. Não faça nada enquanto sua mente não estiver clara e desperta. Espere até ser você mesmo de novo e estar bem desperto antes de decidir algo. “Iludido e desperto” é um conjunto de critérios que pode ajudar a determinar o que é certo e o que é errado.
Outro importante conjunto de critérios consiste em saber quando abrir ou fechar o caminho. “Abrir” significa que às vezes você precisa fazer exceções. Vamos supor que você não queira mentir: você acredita que dizer a verdade é sempre algo bom e que é errado mentir, mas imagine que alguém esteja procurando uma determinada pessoa para matá-la e vem lhe perguntar se você viu essa pessoa e se sabe onde ela se escondeu. Se você disser a verdade, a outra pessoa perderá a vida. Portanto, você é forçado a mentir, dizendo, “Não sei onde ela está.” Você é movido pela compaixão e abre o caminho, ou seja, permite-se mentir e fazer uma exceção. Moralidade sem um pouco de destreza e flexibilidade mental não seria algo sábio nessa hora. É por isso que é muito importante abrir o caminho e se permitir fazer concessões.
Será que um médico tem o direito de mentir para seu paciente? Espera-se que ele sempre diga a verdade, mas há muitas maneiras de dizer a verdade. Se você contar a verdade na hora errada, no lugar errado, a outra pessoa poderá morrer simplesmente por ter escutado a verdade. É por isso que escolhemos um bom momento, permitindo que o outro possa receber a verdade sem se chocar. Nesse sentido, decidir se a verdade deve ser dita ou não e saber como contar a verdade de forma hábil é algo que todo médico deveria aprender. Às vezes optamos por não dizer a verdade para ajudar o outro a sobreviver. Como podemos ver, não é tão simples; é bem complicado. É por isso que precisamos compreender profundamente para conseguirmos praticar como abrir o caminho e fazer exceções.
Bloquear o caminho significa que às vezes – ainda que algo não seja inerentemente errado – você precisa abster-se de uma determinada ação. Vamos imaginar que você beba uma taça de vinho todo fim de semana. Você sente prazer ao beber um copo de vinho ou outro de vez em quando e nos últimos trinta anos nunca prejudicou seu corpo e nunca ficou bêbado, mas um dia você decide participar de um retiro e as pessoas lhe aconselham a abster-se totalmente de bebidas alcoólicas. E aí você se pergunta, “Por quê?”, já que isso nunca lhe fez mal. Por que se privar de tal prazer?
Uma senhora inglesa me perguntou uma vez: “Por que preciso parar de tomar meu vinho? É meu prazer.” Respondi: “Bem, sei que você está totalmente certa ao dizer que nunca lhe fez mal, mas os filhos tendem a fazer aquilo que os pais fazem. Se os pais fumam, é bem provável que os filhos fumem. Talvez você não tenha a semente do alcoolismo, mas nada impede que um de seus filhos a tenha. Parar de beber é apoiar seus filhos. Não é por você, mas por eles”. É isso que significa bloquear o caminho: queremos evitar que algo nocivo aconteça no futuro.
Todos dizem que devemos beber com moderação, mas a realidade é que se não tomarmos o primeiro copo não correremos o risco de tomar o segundo ou o terceiro. Portanto, abster-se do primeiro copo é fechar o caminho. Talvez você consiga fazer algo sem se prejudicar, mas seu irmão mais novo pode fazer o mesmo e sair prejudicado.
Alguém que consome álcool e depois volta dirigindo e chega em casa em segurança é alguém de muita sorte. Se ele disser, “Bebi e estou bem.” não percebe que está bem por pura sorte. Portanto, não consumir bebidas alcoólicas antes de dirigir é bloquear o caminho, colocar um obstáculo à sua frente para que o dano e o sofrimento não se manifestem.
O último conjunto de critérios é o da “aparência e conteúdo”. Às vezes pode não parecer que estamos transgredindo uma diretriz ética quando, no fundo, estamos. Vamos supor que você esteja em um lugar onde alguém está tentando matar outra pessoa e você tem a capacidade de intervir e prevenir o dano, mas acaba se omitindo. Embora não seja um assassino, você está violando o preceito de não matar. Não está matando diretamente, mas está permitindo que outros matem. Chamamos isso de “não-intervenção”. Você não intervém e essa ação tem o mesmo efeito de uma ação prejudicial. Você continua responsável por suas ações. Ao se deparar com uma situação desse tipo, você deve intervir. Não pode simplesmente dizer, “Bem, não sou responsável, não fui eu que matei” - você esteve lá e não fez nada a respeito. Você é responsável.
Às vezes somos forçados a mentir para salvarmos uma vida. O ato de não mentir será uma transgressão. No nível da aparência, não mentir é o correto, mas em termos de conteúdo, não mentir é errado, pois se você não mentir, o outro morrerá. Este é um conjunto importante de critérios. Aparentemente, tudo está bem, mas em termos de conteúdo e contexto, está tudo errado. Às vezes precisamos mentir e às vezes temos que matar. É muito difícil. A ética aplicada é uma disciplina que estuda como chegar a um desfecho moral em determinadas circunstâncias. Não basta investigar se algo é certo ou errado. Temos que questionar as normas estipuladas para verificarmos se nosso comportamento é verdadeiramente ético.
Esses critérios éticos podem ser usados na vida diária. Em última instância, trabalhamos para transcender todos os critérios e normas. A filosofia da ética budista pode ser resumida nos seguintes termos:
Tanto o sujeito como o objeto da percepção se manifestam a partir da consciência de acordo com o princípio do interser. Os seres humanos estão presentes em todas as coisas e todas as coisas estão presentes nos seres humanos. No nível dos fenômenos parece haver nascimento e morte, ser e não-ser. Contudo, ontologicamente, essas idéias não podem ser aplicadas à realidade. A consciência dinâmica é chamada de energia do karma. Tudo se desenvolve a partir do princípio da interdependência – mas além disso há o livre arbítrio e a possibilidade de transformar. Existe a probabilidade também. Um afeta o todo e o todo afeta esse um. Interser também significa impermanência, não-self, vacuidade, karma e inúmeros sistemas de mundo. A Visão correta dá origem à Ação Correta, que reduz o sofrimento e aumenta a felicidade. A felicidade e o sofrimento interexistem. A realidade absoluta transcende as idéias de bem e mal, certo e errado.
(Traduzido do livro “Good Citizens: Creating Enlightened Society” – Thich Nhat Hanh - por Denise Kato)
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