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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
Os Quatro Pensamentos Imensuráveis (parte I)
No tempo do Buda, os brâmanes rezavam pedindo para que quando morressem pudessem ir para o Céu residir eternamente na companhia de Brahma, o Deus universal. Um dia um brâmane perguntou ao Buda: "O que posso fazer para ter certeza de que irei ter com Brahma quando morrer?" e o Buda respondeu: "Sendo Brahma para você a fonte de todo o Amor, para estar com ele você precisa praticar as 'Quatro Moradas de Brahma', (Brahmaviharas) ou os Quatro Pensamentos Imensuráveis. - amor, compaixão, alegria e equanimidade," Amor em sânscrito é maitri; em páli é metta. Compaixão é Karuna nas duas línguas. Alegria é mudita. Equanimidade é upeksha em sânscrito e upekkha em páli. Uma vihara é uma morada, ou um lugar de habitação. As Quatro Brahmaviharas são as quatro moradas do amor verdadeiro. Este é um endereço muito melhor para se morar do que um hotel cinco estrelas. É uma morada de mil estrelas. As Quatro Brahmaviharas são chamadas de "imensuráveis" porque quando são praticadas crescem todos os dias dentro de nós, até abraçarem o mundo todo. Nós nos tornamos mais felizes, e aqueles que estão ao nosso redor também se tornam mais felizes.
O Buda respeitava o desejo das pessoas de praticar a própria fé, e por isso incentivou o brâmane em sua própria crença. Se você gosta de meditação caminhando, deve praticá-la. Se preferir meditação sentada, faça isso. Mas preserve suas raízes cristãs, judaicas ou muçulmanas. Esta é a melhor maneira de entrar em sintonia com o espírito de Buda. Se você cortar suas raízes, não conseguirá ser feliz. Se praticar amor, compaixão, alegria e equanimidade, saberá curar as doenças representadas por sentimentos tais como raiva, tristeza, insegurança, depressão, ódio, solidão e apegos doentios.
Alguns comentaristas. dos sutras disseram que as Brahmaviharas não são o ensinamento mais elevado do Buda e que elas não conseguem pôr um fim no sofrimento nem nas aflições, mas isso não é correto. Certa vez, Buda disse a Ananda: "Ensine os Quatro Pensamentos Imensuráveis aos jovens monges, para que eles se sintam mais seguros, fortes e alegres, sem aflições no corpo ou na mente. Assim, durante toda a vida, eles estarão melhor equipados para praticar a vida pura de um monge."
Em outra ocasião, um grupo de discípulos do Buda visitava o mosteiro de uma seita vizinha, e os monges de lá perguntaram: "Ouvimos dizer que seu instrutor Gautama ensina os Quatro Pensamentos Imensuráveis do amor, compaixão, alegria e equanimidade. Nosso mestre também ensina isso. Qual é a diferença?" Os discípulos do Buda não sabiam responder. Quando voltaram ao mosteiro, o Buda lhes disse: "Quem pratica os Quatro Pensamentos Imensuráveis juntamente com os Sete Fatores do Despertar, as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo chegará sem dúvida à iluminação." Amor, compaixão, alegria e equanimidade são a própria natureza da pessoa iluminada. São os quatro aspectos do verdadeiro amor dentro de nós, dentro das outras pessoas, e na verdade dentro de todas as coisas.
O primeiro aspecto do verdadeiro amor é maitri, a intenção e capacidade de proporcionar alegria e felicidade. Para desenvolver essa capacidade, temos que praticar o enxergar e o ouvir em profundidade, para saber o que devemos fazer e não fazer para poder proporcionar felicidade aos outros. Se você oferecer à sua amada algo de que ela não precisa, isso não será maitri. Você tem que ser capaz de observar a verdadeira situação dela, senão suas ofertas correm o perigo de causar infelicidade.
No Sudeste da Ásia, muitas pessoas gostam de uma fruta grande e espinhosa chamada durian. Poder-se-ia inclusive dizer que são viciados em durian. O cheiro é muito forte, e algumas pessoas, quando acabam de comer essa fruta, colocam a casca embaixo da cama, para continuar a sentir seu cheiro. Eu, particularmente, acho horrível o cheiro de durian. Certa vez, quando eu cantava um sutra em meu templo no Vietnã, havia um durian sobre o altar, que havia sido oferecido a Buda. Eu tentava recitar o Discurso do Lótus, usando um tambor de madeira e um sino grande em forma de tigela como acompanhamento, mas tive dificuldades para me concentrar. Finalmente, levei o sino até o altar e o virei de boca para baixo por cima da fruta, para cobrir o durian, na esperança de conseguir cantar o sutra. Depois que terminei, fiz uma reverência diante de Buda e libertei o durian. Se você me dissesse: "Thây, eu o amo muito e gostaria que você comesse um pouco deste durian", eu sofreria. Se você me ama certamente vai querer que eu seja feliz, e, entretanto está me forçando a comer durian. Esse é um exemplo de amor sem compreensão. Sua intenção é boa, mas você não tem a compreensão correta.
Sem compreensão, o amor não é amor verdadeiro. É preciso observar em profundidade para poder enxergar e compreender as necessidades e aspirações, bem como o sofrimento daqueles que amamos. Nós todos precisamos de amor. Amor nos proporciona alegria e bem-estar. É natural como o ar que respiramos. Somos amados pelo ar, por isso precisamos de ar para ser felizes e nos sentir bem. Também somos amados pelas árvores, por isso necessitamos das árvores para nos manter saudáveis. Entretanto, para ser amados temos que amar, o que significa que precisamos compreender. Para que nosso amor possa se desenvolver, temos que escolher a ação ou a não-ação adequadas, de forma a proteger o ar, as árvores e aqueles que amamos.
Maitri pode ser traduzida como "amor" ou "bondade amorosa". Alguns mestres budistas preferem "bondade amorosa", porque acham que a palavra "amor" é uma palavra perigosa. Mas eu prefiro "amor". As palavras às vezes também adoecem, e nós temos que curá-las. Nós temos usado palavras que significam amor quando na verdade queremos dizer apetite ou desejo, como por exemplo, "eu amo hambúrgueres". Deveríamos usar a linguagem de uma forma mais cuidadosa.
"Amor" é uma linda palavra; seu verdadeiro sentido deveria ser restaurado. A palavra "maitri" tem o mesmo radical que a palavra "mitra", que significa amigo. No budismo, o sentido fundamental do amor é a amizade. Todos nós temos dentro de nós as sementes do amor. Podemos desenvolver essa fonte maravilhosa de energia, nutrindo o amor incondicional, aquele que não espera nada em troca. Quando chegamos a compreender alguém profundamente, inclusive alguém que nos prejudicou, não conseguimos deixar de amar essa pessoa. Shakyamuni Buda declarou que o Buda da próxima era se chamará "Maitreya, o Buda do Amor".
O segundo aspecto do verdadeiro amor é karuna, a intenção e a capacidade de soltar e transformar o sofrimento, aliviando a tristeza. Karuna é geralmente traduzida como "compaixão", mas isso não é totalmente correto. "Compaixão" é uma palavra composta de com ("junto com") e paixão ("sofrimento"). Mas nós não precisamos sofrer para remover o sofrimento de uma outra pessoa. Os médicos, por exemplo, são capazes de aliviar o sofrimento de seus pacientes sem passarem eles mesmos pela doença. Se sofrermos demasiado seremos esmagados, tornando-nos incapazes de ajudar seja quem for. Mesmo assim, até encontrar uma palavra melhor, usaremos "compaixão" como tradução para karuna.
Para conseguirmos desenvolver um grau maior de compaixão dentro de nós, devemos praticar a respiração consciente, e ouvir e enxergar com atenção plena. O Discurso do Lótus descreve Avalokiteshvara como o bodhisattva que pratica olhando com os olhos da compaixão e ouvindo atentamente os gritos do mundo. A compaixão contém em si uma profunda preocupação pelo outro. Ao saber que o outro está sofrendo, você se senta perto dessa pessoa, observa-a em profundidade e ouve com atenção, para conseguir atingir sua dor. Isso é comunicação profunda, é comunhão com o outro, e é suficiente para proporcionar um enorme alívio a quem sofre.
Uma única palavra, ação ou pensamento compassivos de nossa parte têm o poder de aliviar o sofrimento de outra pessoa, trazendo alegria. Uma única palavra é capaz de proporcionar conforto e confiança, eliminar dúvidas, ajudar alguém a não cometer um erro, reconciliar um conflito, ou abrir a porta da libertação. Uma ação pode salvar a vida de alguém ou ajudar essa pessoa a aproveitar uma oportunidade rara. Um pensamento também tem o mesmo poder, porque os pensamentos sempre conduzem a palavras e ações. Quando existe compaixão no coração, qualquer pensamento, palavra ou ação são capazes de produzir milagres.
Quando eu era noviço, não conseguia entender por que o Buda tem um sorriso tão lindo se o mundo está repleto de sofrimento. Será que ele não se incomoda com tanta dor? Mais tarde, descobri que o Buda tem em si grandes quantidades de compreensão, calma e força, razão pela qual o sofrimento do mundo não o aniquila. Ele consegue sorrir para o sofrimento porque sabe lidar com ele e transformá-lo. Precisamos ter consciência do sofrimento que existe no mundo, mas sem perder nossa clareza, nossa calma e nossa força, para que possamos ajudar a transformar as situações. Um oceano de lágrimas não nos afogará desde que haja karuna. É por isso que o sorriso do Buda é possível.
(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)
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