Sangha
Virtual
Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
A sabedoria da não discriminação
Suponha que você ame laranjas. Você considera a laranja sua fruta favorita e é livre para desfrutar de suas laranjas. Mas nada impede que você desfrute de outros tipos de frutas como manga, kiwi ou mesmo durian. É uma pena que você só se comprometa a comer um tipo de fruta. Você é livre e pode desfrutar de todos os tipos de frutas.
É uma pena se você esteja comprometido apenas com o cristianismo ou com o budismo. Porque o cristianismo é uma das heranças espirituais da humanidade e o budismo também. O budismo é apenas um tipo de herança espiritual da humanidade. Seria uma pena se você se comprometer apenas com uma herança espiritual, se você quiser ser fiel apenas com uma herança. Porque nas outras heranças, há coisas bonitas. Sua laranja pode ter um sabor maravilhoso, mas a manga também pode ter um sabor maravilhoso. Seria uma pena se você discriminasse a manga, o kiwi e o durian.
Assim, em seu verdadeiro lar, não há discriminação. Você é livre. E quando você vive com a sabedoria da não discriminação, você não sofre. Você tem muita sabedoria e abraça todos, todos os países, todas as culturas, todos os grupos étnicos. Esse é o meu caso, não discrimino absolutamente nada. Adoro laranja, mas também adoro manga e kiwi. Embora eu não coma durian, não discrimino e meus amigos, meus discípulos, comam por mim.
Essa mão você chama de minha mão direita e esta, de mão esquerda. São duas mãos, e você não mistura as duas. Esta é a mão direita, esta é a mão esquerda. Minha mão direita escreveu todos os meus poemas, exceto um. Eu sempre escrevo meus poemas com caneta, exceto uma vez que eu não tinha caneta. Então havia um poema em mim que queria sair e eu não tinha uma caneta. Havia uma máquina de escrever sobre a mesa. Então peguei um envelope velho e o enrolei na máquina de escrever e datilografei meu poema. Esse foi aquele momento único em que minha mão esquerda estava participando da escrita de poesia. Eu me lembro do título daquele poema, "O pequeno búfalo perseguindo o sol".
No entanto, minha mão direita nunca tem um complexo de superioridade. Minha mão direita não pensa, ou diz coisas como: "Mão esquerda, você sabe que eu escrevi todos os poemas, exceto um? Você sabe que eu posso fazer caligrafia? Eu posso convidar o sino para tocar. Você é a mão esquerda, você não parece ser boa para nada." Minha mão direita nunca tem esse tipo de pensamento, esse tipo de atitude. É por isso que minha mão direita nunca sofre por ciúmes, ou principalmente pelo complexo de superioridade. Quando você se sente mais poderoso, mais talentoso, mais importante, então você sofre. Porque isso é um complexo. Complexo de superioridade.
Não só quando você tem o complexo de inferioridade, quando você tem baixa autoestima que você sofre, mas quando você tem esse tipo de autoestima alta, você sofre. Minha mão esquerda, embora ela não tenha escrito muitos poemas, embora ela não tenha escrito feito qualquer caligrafia, ela não sofre de nenhum complexo. Nenhum complexo de inferioridade na minha mão esquerda. É maravilhoso, ela não sofre nada. Não há comparação. Não há auto-rebaixamento. É por isso que minha mão esquerda está perfeitamente feliz.
Um dia, eu estava tentando pendurar um quadro na parede. Minha mão esquerda estava segurando um prego e minha mão direita, um martelo. Naquele dia, não sei por quê, em vez de bater no prego, bati no dedo. Quando eu acertei meu dedo da mão esquerda, a mão esquerda sofreu. A mão direita logo abaixou o martelo e cuidou da mão esquerda da maneira mais terna como se estivesse cuidando de si mesmo. Muito ternamente. Não o considera como seu dever, não. As coisas acontecem assim, muito naturalmente. Minha mão direita faz coisas para minha mão esquerda como se fizesse por si mesma.
Não há discriminação "eu sou eu, e você é você." Lembra daquela psicóloga que disse: "Eu sou eu e você é você. E se por acaso a gente concordar, tudo bem?" Não, este não é o caso. Minha mão direita não diz: "Eu sou eu e você é você. Somos mãos diferentes". Não existe tal pensamento. Minhas duas mãos praticam perfeitamente o ensinamento do Buda: não-eu, sem um eu separado. Minha mão direita considerava o sofrimento de minha mão esquerda como seu próprio sofrimento. Por isso fez de tudo para cuidar da mão esquerda. Minha mão esquerda não tinha nenhuma raiva, eu te asseguro. Por favor acredite em mim. Minha mão esquerda não tinha nenhuma raiva em relação à mão direita. Não dizia: "Você, mão direita, você me fez injustiça. Dê-me esse martelo, eu quero justiça!" Não existe isso.
É por isso que você confirmou que existe um tipo de sabedoria inerente à minha mão direita e à minha mão esquerda. Essa sabedoria é chamada pelo Buda de sabedoria da não discriminação. Se você tem, não tem que sofrer nada. A sabedoria da não discriminação está escrita em Sâncrito, Nirvikalpa-jñāna. "vikalpa", discriminação; "nirvikalpa", não discriminação; "jñāna", sabedoria. A sabedoria da não discriminação é inata em nós. Mas se permitirmos que percepções erradas e energias de hábitos a encubram, ela não pode se manifestar.
A prática da meditação nos ajuda a reconhecer a semente dessa liberdade em nós. Se a cultivamos, e regamos todos os dias, ela se manifestará plenamente e nos libertará. Na outra pessoa também há a sabedoria da não discriminação. Mas como ele ou ela vive em tal cultura, em tal ambiente onde o pensamento e a ação são tão categorizados pelo individualismo, egoísmo, ignorância, a sabedoria da não discriminação não pôde se manifestar.
Naquele ano eu fui para a Itália para um retiro. Notei que plantaram oliveiras em grupos de três ou quatro. Eu estava surpreso. Perguntei: "Por que você planta oliveiras em grupos de três ou quatro?" Eles disseram: "Não, não fizemos." Mas, na verdade, se você olhar, verá grupos de oliveiras de três ou quatro. Eles explicaram: "Não há três oliveiras ou quatro. É apenas uma.” Naquele ano estava tão frio que as oliveiras morreram. Mas lá embaixo, lá no fundo no nível da raiz, elas não morreram. Em vez de ter um tronco, eles têm três ou quatro troncos de oliveiras. Olhando superficialmente, você pensa que são três ou quatro oliveiras, mas, na verdade, elas são um.
Se você pertence, vocês são irmãos dos mesmos pais. Você é assim. Vocês têm as mesmas raízes, pai e mãe. Estas três ou quatro oliveiras têm o mesmo bloco de raízes. Parecem três árvores diferentes, quatro oliveiras diferentes. Mas elas são apenas uma. Seria engraçado se essas árvores discriminassem contra uma e lutassem entre si e se matassem. Isso é pura ignorância. Se olharem profundamente e tocarem suas raízes, saberão que são irmãos, irmãs, são um.
Suponha que os israelenses toquem a sabedoria da não-discriminação, eles descobrirão que os palestinos são seus irmãos. Eles são como a mão direita e a mão esquerda. Será muito bobo se considerarem inimigos e se matarem por uma questão de sobrevivência. Seria uma pena se hindus e muçulmanos tivessem que se matar, tivessem que lutar entre si. Seria uma pena se católicos e protestantes lutassem e se matassem. Porque são da mesma raiz. Eles não foram capazes de tocar seu fundamento de ser, permitindo que a sabedoria da não discriminação se manifestasse, para lhes mostrar o caminho e a verdade.
(Palestra de Dharma de Thich Nhat Hanh em 26 de março de 2004 – transcrito do vídeo do YouTube
https://youtu.be/ZxpRCDjCy8k)
Traduzido por Leonardo Dobbin)
Comente esse texto em http://sangavirtual.blogspot.com
Caso queira obter esse texto em formato PDF clique aqui