Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Os sábios não sabem o que é bom ou mal

 

Princeton, New Jersey, 24 de dezembro de 1962

 

No nosso tempo, a luta entre o velho e o novo irá atingir o seu auge. Não acabou ainda, e nós carregamos cicatrizes dessa luta em nossos corações. As questões levantadas pelos filósofos contemporâneos nos fazem sentir perdidos e ansiosos. Mentes confusas sugerem que a existência é sem sentido, até mesmo absurda, e isso acrescenta outra camada de preto para os nossos corações escurecidos. "A existência é falha. Seres humanos são repugnantes. Ninguém pode ter esperança de ser bom. Não há maneira de embelezar a vida." Mesmo adotando esses modos de pensar, as pessoas se apegam à ilusão de que somos livres para ser quem nós queremos. No entanto, na maioria das vezes estamos apenas reagindo aos ferimentos gravados em nossos corações ou agindo devido ao nosso carma coletivo.

 

Quase ninguém ouve o seu verdadeiro eu. Mas quando não somos nós mesmos, qualquer liberdade que pensamos que temos é ilusória. Às vezes, nós rejeitamos a liberdade porque temos medo dela. Nossos verdadeiros eus estão enterrados sob camadas de musgo e de tijolos. Temos de romper essas camadas e sermos liberados, mas estamos com medo de que possamos quebrar também.

 

Temos que nos lembrar repetidamente que as camadas de musgo e de tijolos não são nosso verdadeiro eu. Quando você percebe isto, verá cada fenômeno, cada dharma, com novos olhos. Comece por olhar profundamente para si mesmo e veja o quanto é milagroso seu corpo. Nunca há qualquer razão para olhar para o seu corpo físico com desprezo ou desrespeito. Não ignore as coisas que estão ao seu alcance. Nós não as valorizamos. Nós até as amaldiçoamos.

 

Considere seus olhos. Como podemos tomar uma coisa tão maravilhosa como os nossos olhos como algo certo? No entanto, é o que fazemos. Nós não olhamos profundamente para essas maravilhas. Nós as ignoramos e, como resultado, nós as perdemos. É como se nossos olhos não existissem. Só quando ficarmos cegos é que vamos perceber o quão preciosos nossos olhos eram, e então será tarde demais. Uma pessoa cega que recupera sua visão entende a preciosidade de seus olhos. Ela tem a capacidade de viver feliz aqui na Terra. O mundo da forma e da cor é um milagre que oferece alegrias intensas todos os dias.

 

Depois de termos essa percepção, não poderemos olhar para o céu azul e as nuvens brancas sem sorrir. O mundo revela constantemente a sua frescura e esplendor. Uma pessoa cega que recupera sua visão sabe que o paraíso é aqui, mas em pouco tempo ela também vai começar a tomá-lo como certo novamente. O paraíso chega a parecer lugar-comum, e, em questão de semanas ou meses, ela vai perder a consciência de que está no paraíso. Mas quando os nossos "olhos espirituais" são abertos, nunca perdemos a capacidade de ver a maravilha de todos os fenômenos, todas as coisas.

 

Quando eu era um jovem monge me foi ensinado que os maiores sofrimentos eram nascimento, doença, velhice, morte, sonhos não realizados, a separação de seus entes queridos, e contato com aqueles que nos desprezam. Mas o verdadeiro sofrimento da humanidade reside na forma como olhamos para a realidade. Olhe e você vai ver que o nascimento, a velhice, a doença, a morte, as esperanças não cumpridas, a separação de seus entes queridos e contato com aqueles que nos desprezam são também maravilhas em si mesmos. Eles são todos aspectos preciosos da existência. Sem eles, a existência não seria possível. O mais importante é saber como navegar as ondas da impermanência, sorrindo como quem sabe que nunca nasceu e nunca vai morrer.

 

O Buda contou esta história: "Um homem atirou uma pedra em um cão. Enlouquecido com a dor, o cão latiu para a pedra, sem entender que a causa de sua dor era o homem, e não a pedra". Da mesma forma, pensamos que as formas, sons, cheiros, gostos e objetos de contato são as fontes do nosso sofrimento e que, para superar o sofrimento, forma, som, cheiro, gosto e toque devem ser todos destruídos. Nós não percebemos que o nosso sofrimento está na forma como vemos e usamos forma, audição, olfato, paladar e tato, porque vemos a realidade através das cortinas escuras de nossas visões estreitas e desejos egoístas.

 

Aqui na América, eu sinto uma saudade intensa do som familiar da língua vietnamita. Há momentos em que penso que se apenas eu pudesse ouvir uma voz familiar por dois minutos,  poderia ser feliz o dia todo. Uma manhã Phuong telefonou. Parecia completamente natural estar falando com ele. Apesar de não termos falado muito, eu fiquei de bom humor o resto do dia. Desde então, sempre que eu falo com um amigo, escuto com toda a minha atenção as suas palavras e o tom de sua voz. Como resultado, passei a ouvir as suas preocupações, sonhos e esperanças.

 

Não é fácil ouvir tão profundamente a ponto de entender tudo o que a outra pessoa está tentando te dizer. Mas cada um de nós pode cultivar a capacidade de escutar profundamente. Eu já não sou indiferente a fenômenos que passam diante dos meus sentidos. Uma folha, a voz de uma criança - estes são tesouros da vida. Eu olho e escuto profundamente, a fim de receber as mensagens que transmitem esses milagres.

 

A separação de seus entes queridos, decepções, impaciência com coisas desagradáveis - tudo isso também são coisas construtivas e maravilhosas. Quem somos é, em parte, resultado de nossas experiências desagradáveis. Olhar profundamente nos permite ver os elementos maravilhosos contidos nas fraquezas dos outros e nas nossas próprias, e estas flores de discernimento nunca vão murchar. Com este insight, vemos que o mundo do nascimento e da morte e o mundo do nirvana são os mesmos.

 

Uma noite, enquanto praticava meditação sentada, senti o desejo de gritar, "O trabalho de todos os Budas foi completamente cumprido!" Não é possível julgar qualquer evento simplesmente como afortunado ou como infortúnio, bom ou ruim. É como a velha história sobre o agricultor e o cavalo. Você deve viajar através do tempo e espaço para se conhecer o impacto de qualquer evento. Todo o sucesso contém algumas dificuldades, e cada fracasso contribui para o aumento da sabedoria ou o sucesso futuro. Cada evento é ao mesmo tempo feliz e infeliz. Sorte e azar, bom e mau, existem apenas em nossas percepções.

 

As pessoas acham que é impossível estabelecer um sistema de ética sem se referir ao bem ou mal. Mas as nuvens flutuam, flores brotam, e o vento sopra. Que necessidade temos de estabelecer uma distinção entre o bem e o mal? Há pessoas que vivem como as nuvens, as flores e o vento, não pensando sobre a moral, mas muitas pessoas apontam para suas ações e palavras como modelos religiosos e éticos, e os elogiam como santos. Estes santos simplesmente sorriem. Se eles revelaram que eles não sabem o que é bom e o que é mau, as pessoas pensarão que eles são loucos.

 

Quem é o verdadeiro poeta? O orvalho doce que um verdadeiro poeta bebe todos os dias pode envenenar outros. Para alguém que tem visto dentro da natureza das coisas, o conhecimento dá origem à ação. Para aqueles que têm verdadeiramente visto, não há filosofia de ação necessária. Não há conhecimento, realização, ou objeto de realização. A vida é vivida assim como o vento sopra, as nuvens flutuam a deriva, e as flores brotam. Quando você sabe como voar você não precisa de um mapa de rua. Sua linguagem é a linguagem das nuvens, vento e flores. Se te fazem uma pergunta filosófica, você pode responder com um poema ou pergunta: "Você já tomou o seu café da manhã? Então por favor, lave sua tigela". Ou aponta para a floresta da montanha.

 

Se você não acredita em mim, olhe e veja

O outono chegou.

Folhas dispersas de muitas cores inundam a floresta da montanha!

 

Se eles ainda não puderem ver, você pode pegar um pedaço de pau e ameaçar atacá-los, a fim de levá-los a parar de usar conceitos para tentar entender a verdade. Se tivesse havido um poeta como esse vivendo em Phuong Boi, a floresta da montanha teria sido ainda mais radiante.

 

Em sutras budistas, há um termo que é traduzido como "adorno". Lembro-me da vez que o Rei Hue Tong da dinastia Ly convidou Mestre Zen Hien Quang para deixar sua cabana meditação para vir morar no palácio. Hien Quang recusou, dizendo que os mestres zen talentosos e virtuosos que já viveram na capital tinham apenas "adornado" o palácio. A presença de uma pessoa realizada embeleza a vida pelo seu caminho da não-ação. O que um caminho de não-ação tem a ver com o planos e programas?

 

Em 15 minutos, será meia-noite. O Natal está quase aqui. Eu estou acordado escrevendo nessa hora sagrada em meu diário. Meus pensamentos fluem e é maravilhoso derramá-los no papel. Eu escrevi sobre a experiência espiritual que me revelou a forma de olhar e ouvir com toda a atenção. Tais momentos só podem vir uma vez na vida. Eles aparecem como embaixadores da verdade, mensageiros da realidade. Se não estivermos atentos, eles podem passar despercebidos. O segredo de mestres zen está em descobrir o caminho de retorno desses momentos, e saber como preparar o caminho para tais momentos surgirem. Os mestres sabem como usar a luz ofuscante daqueles momentos para iluminar o caminho de volta, a viagem que começa no nada e não tem destino.

 

(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Fragrant Palm Leaves” – Diário de Thich Nhat Hanh - Tradução Leonardo Dobbin)

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