Sangha
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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
O Segundo Treinamento da Consciência: Desapego às Visões
“Cientes do sofrimento criado pelo apego a visões e percepções erradas, estamos determinados a evitar ter mente estreita e limitados às nossas atuais visões. Temos o compromisso de aprender e praticar o desapego das opiniões e estar aberto às experiências e insights dos outros, a fim de nos beneficiarmos da sabedoria coletiva. Estamos conscientes de que o conhecimento que possuímos atualmente não é uma verdade absoluta e imutável. O insight é revelado através da prática de escutar com compaixão, olhar profundamente e abrir mão de noções, e não através da acumulação de conhecimento intelectual. A verdade é encontrada na vida e observaremos a vida dentro e ao redor de nós a cada momento, prontos para aprender ao longo de nossas vidas."
O Segundo Treinamento da Consciência nasce e está intimamente ligado ao Primeiro e também lida com a mente. Este treinamento nos adverte a não sermos apanhados em nossos próprios conhecimentos ou opiniões. O conhecimento pode ser necessário para pensar e discernir, e pode ser útil em muitos aspectos de nossa vida cotidiana, mas não é a verdade mais elevada.
No budismo, consideramos o conhecimento como um obstáculo à verdadeira compreensão e as visões como uma barreira à percepção. Apegar-se a pontos de vista pode impedir que cheguemos a uma compreensão mais profunda e sólida da realidade.
Temos que aprender a liberar o conhecimento que possuímos atualmente. Se alguém subir uma escada até chegar ao quarto degrau e achar que chegou ao topo, não irá mais longe. Esse é o fim de sua investigação. Precisamos saber que existe um quinto degrau para poder alcançá-lo e, para isso, precisamos deixar o quarto de lado. Não devemos ficar presos no que pensamos que sabemos. Temos que estar prontos para liberar o que sabemos para chegar a outro nível de conhecimento e compreensão. Na tradição budista, isso é a coisa mais importante - aprender a liberar o que sabemos.
O Buda nos ensina a olhar para as coisas com os olhos do interser e a reconhecer sua natureza de surgimento dependente, ou seja, que todas as coisas surgem dependentes uma da outra. Quando somos capazes de ver dessa maneira, nos libertamos de um mundo em que cada coisa parece ter uma identidade individual. A mente que vê as coisas em sua natureza interdependente e co-surgida é chamada de mente da sabedoria não-discriminatória. Isso é o que chamamos de visão correta: a visão que transcende todas as visões. No zen-budismo, há uma expressão que descreve esse insight: "O caminho da fala foi bloqueado, o caminho da mente foi cortado".
"A verdade é encontrada na vida" e não apenas no conhecimento conceitual. Praticamos isso observando a realidade em nós mesmos e no mundo o tempo todo. Observar continuamente a vida significa praticar a atenção plena de acordo com o método descrito no Sutra dos Quatro Estabelecimentos da Atenção Plena. Este sutra nos ensina a ter consciência do que está acontecendo em nosso corpo, em nossos sentimentos, em nossa mente e nos objetos de nossa mente, que é o mundo ao nosso redor. A prática da atenção plena pode nos ajudar a desenvolver concentração e insight, para que possamos ver a realidade como ela é.
No Sutra das Cem Parábolas, o Buda conta a história de um jovem comerciante e seu filho. O comerciante, viúvo, amava muito o filho, mas o perdeu por falta de sabedoria. Um dia, enquanto o homem estava fora, seu garotinho foi sequestrado por uma gangue de bandidos, que arrasou a vila inteira antes de fugir. Quando o jovem comerciante voltou para casa, encontrou os restos carbonizados de uma criança perto de onde sua casa estava e, em seu sofrimento e confusão, confundiu os restos carbonizados com seu próprio filho.
Ele chorou incessantemente, organizou uma cerimônia de cremação e depois levou a bolsa de cinzas dia e noite amarradas no pescoço. Alguns meses depois, seu filho conseguiu escapar dos bandidos e encontrar o caminho de casa. À meia-noite, ele bateu na porta da casa reconstruída de seu pai, mas o pai, pensando que algum garoto travesso o estava ridicularizando, recusou-se a abrir a porta. O garoto bateu e bateu, mas o comerciante se apegou a sua opinião de que seu menino estava morto e, eventualmente, seu filho teve que ir embora. Esse pai que não podia deixar de lado sua percepção errada perdeu o filho para sempre.
O Buda disse que, quando estivermos apegados a opiniões, mesmo que a verdade venha à nossa porta, nos recusaremos a deixar entrar.
Este treinamento indica que a sabedoria, ou insight, é coletiva. Em uma época de individualismo como o nosso, somos facilmente levados a acreditar que nossa visão é correta e esquecemos de ouvir as opiniões dos outros. Ao ouvir os outros, chegamos mais perto da verdade.
(Do livro “Interbeing”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)
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