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Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Sem inimigos – Lembranças da Guerra

 

Minha verdadeira casa não se limita a um lugar, a um tempo. Minha verdadeira casa não é o Vietnã, minha verdadeira casa não é a França, meu verdadeiro lar não é a América, meu verdadeiro lar não é a África, meu verdadeiro lar não é a Palestina, meu verdadeiro lar não é Israel.

 

Embora eles não me deixem voltar para o Vietnã, ainda tenho minha verdadeira casa no aqui e agora. Talvez eles estejam no Vietnã, mas eles não têm uma casa. Por isso não me sinto como uma vítima. Eu não sinto que eles sejam meus inimigos. São vítimas do medo. Eles acreditam que se eu for para casa vá criar uma atmosfera de solidariedade, de amizade, de fraternidade que pode ameaçar o seu poder. Isso é medo. Isso é um obstáculo. Eu quero ajudá-los a estarem livres do medo. Eles não são meus inimigos, são aqueles a que eu quero ajudar. Eles são objetos da minha prática de compaixão e compreensão. Eu não tenho inimigos.

 

Durante a Guerra do Vietnã, foi tão difícil para nós expressarmos nossa preocupação Muitos de nós, a maioria de nós não queria a guerra. A guerra nos colocou em uma situação onde irmãos tinham que matar irmãos com armas estrangeiras e ideologias. Comunismo e anticomunismo foram importados. Também armas usadas ​​pelos comunistas foram importadas. Armas usadas pelos anticomunistas foram importadas. Eles nos deram armas e ideologias e nos exortaram a lutar uns contra os outros e matar uns aos outros.

 

Nós começamos um movimento chamado "Não atire no seu irmão". Nossa voz foi silenciada por ambos os lados, ambas as partes em conflito. Nós tentamos falar, tentamos dizer-lhes, em uma palavra, que nós não queríamos a guerra. Nós não queremos a matança um do outro com armas estrangeiras e ideologias estrangeiras e ainda assim fomos forçados a fazer isso.

 

Aqueles de nós que praticavam a atenção plena, compreensão e compaixão, não queríamos aceitar a guerra. Nós queríamos reconciliar, mas nossa voz não era permitida ser ouvida. Às vezes tínhamos que nos queimar vivos para levar a mensagem adiante.

 

Thich Quang Duc, um amigo meu um dia, ele se queimou vivo. A foto dele apareceu na imprensa internacional. Eu estava em Nova York e eu vi aquela foto na primeira página do New York Times. Ele era um amigo meu.

 

Nhat Chi Mai, um dos seis primeiros membros da Ordem do Interser, minha discípula, ela se queimou pedindo reconciliação. Ela foi ao Templo Tu Nghiem muito cedo pela manhã, cerca de duas ou três horas da manhã. Ela colocou uma estátua da Virgem Maria e Quan Yin, ela deixou para trás um conjunto de cartas clamando para o presidente do Vietnã do Norte, o presidente do Vietnã do Sul, para todos se unirem e pararem com o ato de matar uns aos outros. Então ela se encharcou com gasolina e ela se queimou.

 

Nhat Chi Mai é uma irmã muito próxima, amiga íntima da irmã Chan Khong. Eu estava envergonhado. Ela deixou para trás uma carta para mim: "Thay, não se preocupe, a paz virá. Não sofra muito, não se preocupe." Ela estava prestes a morrer mas ela tentou me confortar, seu professor.

 

É muito, muito difícil para nós expressar nossa preocupação, embora fôssemos a maioria no país. Não queríamos a guerra. Meu livro de poesia, poesia da paz -  eu gosto de chamar isso de poesia de paz, em vez de poesia anti-guerra - foi condenado pelo Norte e confiscado pelo Sul. Então, quando a Universidade de Cornell me convidou para vir, e dar uma série de palestras, aproveitei para sair e clamar pela paz.

 

E em 1º de junho no ano 1966 eu conheci Martin Luther King em Chicago. Exatamente um ano antes, realmente um ano antes, em primeiro de junho 65, escrevi-lhe uma carta explicando por que nós nos queimamos. Isso não é um ato de suicídio, isso é um ato de amor. Você quer transmitir uma mensagem, mas você não tem outras maneiras, você tem que se queimar para que sua mensagem seja transmitida.

 

Assim, o sofrimento do monge que se queimou para passar a mensagem, uma mensagem de amor e compaixão, é da mesma natureza do ato de Jesus Cristo morrendo na cruz. Morrer sem ódio, sem raiva, apenas com compaixão, deixando para trás um apelo compassivo pela paz, pela fraternidade.

 

Assim, exatamente um ano depois, eu o conheci em Chicago. Nós conversamos por algum tempo e então, depois disso, saímos para nos encontrar com a imprensa. E naquele dia ele se posicionou contra a guerra do Vietnã. Esse é o dia em que combinamos nossos esforços de trabalhar pela paz no Vietnã e lutar pelos direitos civis na América.

 

(Palestra de Dharma de Thich Nhat Hanh em Deer Park em 2004 – transcrito do vídeo do YouTube https://youtu.be/zEenf_V2F-E?si=QGvhWq-1lddsf9TP)

Traduzido por Sandro M. Passos)

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