Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Sem nascimento, sem morte e jogando fora a noção de self

 

Os psicoterapeutas podem aprender muito com esse ensinamento. O objetivo da psicoterapia é recuperar um eu saudável. Mesmo que você tenha o chamado eu saudável, continuará sofrendo se estiver preso na ideia de um eu. O verdadeiro alívio ocorre quando você está livre da noção de si mesmo (self). Se sua noção de eu é forte e você está em um relacionamento, sabe o que acontecerá: haverá um choque entre um eu e o outro eu. Quando desistimos e nos tornamos um com nosso amado, estamos praticando o não-eu. Nosso grau de felicidade, compreensão e amor aumenta mil vezes. Olhamos em profundidade para compreender a natureza do interser e saber que o eu é feito apenas de elementos não-eu. Esse insight aprimora muito a qualidade de nossa cura.

 

O Mestre Tang Hoi ensinou que precisamos nos liberar de uma segunda noção: a noção de tempo de vida. Acreditamos que começamos a existir e deixamos de existir em determinados momentos no tempo. Temos que jogar fora o conceito de que nossa vida dura setenta ou oitenta anos, ou que, segundo o médico, só temos mais dois anos de vida e, depois disso, não seremos nada, ninguém. Temos que jogar fora a noção de que do nada ou de ninguém nos tornamos algo ou alguém, e que em algum momento voltaremos novamente a ser nada e ninguém. Essas ideias não correspondem à realidade.

 

Nós já praticamos a investigação da natureza de uma folha de papel. Vimos que a folha de papel não vem do nada. Antes de ser papel, era muitas outras coisas: uma árvore, luz do sol, uma nuvem. Queimamos o papel, pensando que poderíamos reduzi-la a nada, mas não tivemos sucesso. A folha de papel se transformou em várias coisas ao mesmo tempo: fumaça subindo, calor penetrando no cosmos e cinzas que podem se tornar uma pequena flor na grama amanhã. Nossas ideias de ser e não ser, nascimento e morte, são apenas ideias que temos que jogar fora. Elas não podem ser aplicadas à realidade. O Mestre Tang Hoi disse que nunca nascemos e nunca morreremos. Existe apenas manifestação e continuação.

 

Sabemos que o calor e a água formam nuvens: as nuvens não vêm do nada. Se olharmos profundamente para uma nuvem flutuando alegremente no céu, podemos ver sua vida anterior. Quando o ar frio toca a nuvem, a nuvem continua na forma de chuva. Esta não é a morte da nuvem, mas uma transformação e continuação. A nova forma que a nuvem assume não é menos bonita que a forma anterior. A nuvem não entra em pânico, pelo contrário, canta em voz alta enquanto se transforma em chuva. É maravilhoso ser uma nuvem flutuando no céu, mas também é maravilhoso ser chuva caindo no chão e se tornando parte de um rio ou de um campo de arroz.

 

Nada é criado, nada é destruído. Não há nascimento ou morte. É isso que recitamos no Sutra do Coração. As ideias de criação e aniquilação são descartadas. Não é apenas Avalokiteshvara que usa essa linguagem, os cientistas também a usam. O cientista francês Lavoisier disse sobre matéria e energia: "Nada nasce, nada morre". Ele usa a mesma linguagem que o Sutra do Coração. Existe apenas transformação. Às vezes chamamos isso de reencarnação ou renascimento, mas transformação é uma palavra melhor.

 

Estamos livres do nascimento e da morte. Nossa verdadeira natureza é não-nascimento e não-morte. Percebemos o fundamento de nosso ser, olhando e tocando profundamente a realidade. Esta é a única maneira de dissipar nossos medos. Se tivermos esse insight profundo, seremos libertados de nossa angústia e medo de ser e não ser. O Buda disse que todos os medos e desejos nascem da ignorância. Através do conhecimento e insight, obtemos emancipação. Não podemos ter insight se não praticarmos o olhar em profundidade. Olhar profundamente é a prática da meditação; paramos e contemplamos a natureza da realidade. É uma pena se estivermos muito ocupados em nossas vidas diárias e não pudermos viver com atenção e concentrados, de forma tocar profundamente a realidade.

 

Mestre Tang Hoi disse: "Jogue fora.” Jogue fora a ideia de que você é apenas este corpo. Jogue fora a ideia de que sua vida útil é de apenas cinquenta anos. Seja uma nuvem. Seja a chuva. Seja o sol e toque sua própria imortalidade. sua natureza de não-nascimento e não-morte. Use sua inteligência, sua vida cotidiana, a Sangha e sua prática de olhar profundamente. Conheço pessoas que contemplam sua morte de uma maneira alegre, sábia e calma.

 

Quando eu era jovem monge no Vietnã, descobri algo muito interessante enquanto meditava em uma folha de bananeira. Visualize, se quiser, uma bananeira jovem com três folhas. Olhei profundamente na primeira folha e me vi. A segunda folha ainda estava desenrolando e ainda não estava totalmente aberta. A terceira folha era a irmã mais nova das outras duas folhas. A folha mais antiga foi exposta ao sol e à chuva e gozou sua vida como uma folha. Quando ela se desenrolou, fez algo significativo - ajudou sua irmã mais nova a crescer. Ela viu que ela e sua irmã mais nova eram uma. Eles pertenciam à mesma realidade da bananeira.

 

A outra irmã fez a mesma coisa. Ela se desenrolou, aproveitando o sol e a chuva. Ela cantava toda vez que o vento soprava. Ela também ajudou sua irmã mais nova a crescer. Com a sabedoria da não discriminação, a primeira e a segunda folhas se viram na terceira folha. Quando chegou a hora da primeira folha murchar e secar, ela não chorou, porque agora vivia na terceira folha. Ela voltou ao solo e serviu de alimento para a bananeira e as outras folhas.

 

Nossas vidas têm significado. Nós temos que fazer alguma coisa. Enquanto desfruto da minha vida como uma folha, nutro minha irmã e transmito alegria, esperança e o melhor de mim para ela. Ela me ajuda a nutrir nossa outra irmã, a terceira folha. Graças à sabedoria da não discriminação, não lutamos. Não somos apanhadas na noção de um eu, e é por isso que estamos em harmonia uma com o outra. Quando ensino minha irmã a praticar, não me considero professor e ela 'aluna'. Posso transmitir-lhe algo porque sou capaz de praticar a equanimidade, o vazio da transmissão. Não há transmissor e receptor. A transmissão ocorre de maneira natural, porque é feita com o espírito de equanimidade, upeksha ou a sabedoria da não discriminação.

 

 

(Do livro “The Path of Emancipation”– Thich Nhat Hanh)

(Traduzido por Leonardo Dobbin)

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