Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Jogar fora

 

Jogar fora é uma prática maravilhosa. A pergunta que vocês poderiam fazer é: Jogar fora o que? Aprendemos que as percepções erradas são a base de todas as aflições: medo, raiva, discriminação, desespero. Jogar fora aqui significa jogar fora percepções erradas, idéias, noções que são a base de nosso sofrimento. É a prática mais importante na meditação budista.  Você tem uma idéia e a mantém por muito tempo e continua a sofrer. Suponha que um país tenha uma idéia da melhor maneira de se transformar numa super-potência e essa é uma idéia coletiva do país. É um tipo de ideologia que você abraça e acha que é a única maneira de tornar sua nação a mais poderosa.

 

É claro que temos idéias individuais sobre o que deveria ser nossa felicidade.  Pode ser por causa dessas idéias de felicidade que nunca fomos felizes. Portanto é muito importante jogar fora essa idéia, essa noção de felicidade que desenvolvemos. A nação é uma comunidade de pessoas e todos podem se fixar juntos numa idéia, numa ideologia. Cada partido político tem uma idéia e você pode ser capturado por essa idéia. Nunca temos sucesso em realizar nosso objetivo. Uma ideologia pode ser uma armadilha. Sua nação pode ficar presa nela durante 60 ou 70 anos e durante esse período se criar muito sofrimento. Os que não concordam com essa ideologia são postos em hospitais psiquiátricos. E quando você solta a idéia, a felicidade passa a ser possível.

 

Portanto, jogar fora é muito importante. É necessário coragem para jogar fora uma idéia. Se estamos sofrendo talvez seja por que nos fixamos numa idéia e não somos capazes de soltá-la. Portanto jogar fora é muito forte, não é apenas deixar ir embora, significa jogar fora de uma maneira vigorosa.

 

O Sutra do Diamante nos adverte para jogarmos fora quatro noções. A primeira noção é a noção de eu (self). É através do treinamento intenso que você pode jogar fora a noção de eu. Se um casal sabe como viver no espírito do não-eu, não há dificuldade, não há raiva, não há discriminação, não há desespero porque eles tomaram consciência da verdade do não-eu. Se o pai, a mãe, o filho e a filha têm o insight do não-eu eles se olham como inter-sendo e aí não terão problemas. Se o Norte e o Sul tomarem consciência que inter-são não haverá problemas, eles serão como irmãos.

 

Há uma idéia que sou esse corpo, esse corpo sou eu. Esse corpo é meu, pertence a mim. Essa é uma noção que não corresponde à realidade. (...) Quando o pai olha profundamente para si, quando o filho olha profundamente para seu pai, eles se vêem, eles intersão. O pai é ao mesmo tempo o filho e o filho é ao mesmo tempo o pai.  Portanto uma declaração melhor é “Eu intersou”. Está mais perto da realidade à luz da interconexão, à luz da origem interdependente.

 

Vemos que a rosa é feita apenas de elementos não-rosa. Podemos ver que o budismo é feito apenas de elementos não-budistas. Portanto somos livres. Quando você pode ver que o budismo é feito de elementos não budistas, passa a ter muita tolerância, muita abertura com outras religiões e você segue a linha da inclusão, sem discriminação. Você é verdadeiramente budista porque está baseado na visão correta. E a visão correta é que não há eu, não há entidades separadas chamadas eu.

 

Eu inter-sou é mais próximo da realidade e sabemos disso. Eu sou assim porque você é desse jeito. Na escritura está assim: “Isto é desse modo porque aquilo é daquele modo”. Essa é a declaração sobre inter-ser. Se você não está lá eu não posso ser.  Portanto é muito importante jogar fora a noção de eu e olhando profundamente a natureza da realidade você será capaz de jogar fora essa noção de “Eu sou”.

 

A segunda noção que o sutra do Diamante nos alerta para jogar fora é a noção de homem, de ser humano. Isto não é muito difícil. Quando você olha para um ser humano vê ancestrais humanos, ancestrais animais, ancestrais vegetais e ancestrais minerais. Vemos que os humanos são feitos de elementos não humanos. Vemos que somos ao mesmo tempo uma rocha, um rio, uma nuvem, um esquilo, uma rosa. Se tirarmos todos os elementos não humanos, o ser humano não está mais lá.

 

Este é o ensinamento mais profundo de ecologia. Para proteger os seres humanos temos que proteger os elementos.  Porque esses elementos são nossos ancestrais. E se você destruir nossos ancestrais não há jeito de estarmos aqui e por isso discriminação entre homem e natureza é uma visão errada. Você tem que se ver como natureza, ser um com a natureza e tem que respeitar a vida de todas as formas. E assim, desse modo, a harmonia e o respeito à vida é possível. Portanto jogue fora a idéia que o humano é o chefe e pode fazer qualquer coisa. A chave é a contemplação da impermanência do não-eu. Com esse tipo de libertação ficaremos menos orgulhosos, menos arrogantes. Sabemos que temos que respeitar outras espécies, protegê-las de forma que possamos ter uma chance.  E por isso o Sutra do Diamante é o mais antigo texto de profunda ecologia.

 

A terceira noção para ser jogada fora é a noção de seres vivos. Quando pronunciamos as palavras “seres vivos” queremos distinguir os seres vivos dos não vivos, significando os humanos, animais e vegetais. Mas sabemos muito bem que olhando profundamente nos seres vivos vemos elementos que poderiam ser chamados seres não vivos, os minerais. Se olhar profundamente você pode ver que os minerais estão vivos também, portanto não há também fronteiras reais separando vivos de não vivos.

 

Temos a noção de matéria inerte, mas se olharmos profundamente para essa noção que a matéria é alguma coisa sem vida vemos que não é verdade. Primeiramente matéria é o objeto de nossa percepção e por um logo tempo acreditamos que a matéria existe como uma entidade separada. E que a matéria é algo que não se move, mas com o avanço da ciência nós vemos que a matéria não é estática, imóvel como pensávamos. Na verdade os átomos, os elétrons se movem muito, estão bem vivos. E olhando mais profundamente vemos muito da nossa mente neles e não temos certeza se eles estão lá como imaginávamos. Portanto a distinção entre seres vivos e não vivos desaparece depois da meditação. Não há mais discriminação.

 

A quarta noção que deve ser jogada fora é a noção de tempo de vida.  Acreditamos que há o passar do tempo e que nascemos em um ponto do tempo e que vamos morrer em outro ponto do tempo e, portanto nossa vida apenas começa no nascimento e termina na morte. Esse é o tempo de vida. A maioria de nós acredita nisso. Eu apenas passo 70, 80, ou 100 anos nesse planeta e depois eu irei embora. Acreditamos nisso.

 

Mas se olharmos profundamente veremos que isso é uma noção, uma percepção errada. Nascimento é uma noção e a morte também é outra noção, não é realidade.  Outro dia falamos da não-morte de uma nuvem, ela nunca morre. Ela apenas pode se tornar chuva, neve, etc. Na nossa mente morte significa que de algo se torna nada. De alguém você se torna ninguém. E se você olhar profundamente não vê nada assim. Uma nuvem não pode morrer nunca. Quando você queima um pedaço de papel ele se transforma em fumaça, calor, cinza. O pedaço de papel não pode ser reduzido a nada. A idéia de aniquilação é apenas uma idéia, você não pode aniquilar nada.

 

Se você olhar profundamente verá que a natureza da nuvem é a natureza do não nascimento. Na nossa mente nascer significa do nada se transformar em alguma coisa. De ninguém se transformar em alguém. A nuvem não vem do nada. Ela vem da água do rio, do oceano, ela vem do brilho do sol, do calor. O nascimento da nuvem é uma imagem poética. É uma nova manifestação. Antes de ser uma nuvem ela foi muitas outras coisas.

 

Portanto ao dizer que do nascimento até a morte é “ser”, antes do nascimento é “não-ser” e depois da morte é “não ser”, você acredita que de “não ser” você se torna o “ser” e do “ser” se torna novamente ”não ser”. Essa é uma noção que deve ser jogada fora.  Nossa natureza verdadeira é de não nascimento e não morte. Nascimento e morte são noções que não podem ser aplicada a realidade. Nada pode nascer do nada e nada pode ser tornar nada. Essa meditação trará insights que vão dissipar nosso medo, nosso desespero.

 

Essas são as quatro noções básicas que são a base de nosso medo, sofrimento e por isso o Sutra do Diamante nos adverte para praticarmos profundamente de forma a podermos jogá-las fora.

 

(Conversa de Dharma dada por Thich Nhat Hanh em Plum Village no dia 8 de junho de 2006.)

 

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