Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Transformando Energias de Hábito Negativas

 

Hoje eu gostaria de falar pouco sobre o paraíso e o inferno. Eu estive no paraíso, e estive no inferno também, portanto tenho alguma experiência para compartilhar com você. Creio que se você recordar bem, lembrará que esteve também no paraíso e também no inferno. O inferno é quente e  difícil.

 

O Buda, em uma de suas vidas anteriores, estava no inferno. Antes de se transformar em um Buda ele sofreu muito em muitas vidas. Fez muitos erros, como todos nós. Ele se fez sofrer e fez pessoas em torno dele sofrerem. Às vezes cometeu erros muito grandes e é por isso que em suas vidas precedentes estava no inferno. Há uma coleção das histórias sobre as vidas do Buda e muitas centenas das histórias como esta. Estas histórias são compiladas com o título de contos de Jataka. Entre estas centenas das histórias, recordo uma muito vividamente. Eu tinha sete anos, muito novo, li essa história sobre o Buda e fiquei muito chocado. Mas naquele momento não compreendi inteiramente essa história.

 

O Buda estava no inferno porque tinha feito alguma coisa errada, muito errada, que causou muito sofrimento a ele e aos outros. Naquela vida, ele chegou ao fundo do sofrimento por que aquele inferno era o pior de todos os infernos. Com ele estava outro homem e juntos tinham que trabalhar muito duro, sob a direção de um soldado que estava no comando do inferno. Era escuro, frio e ao mesmo tempo quente. O guarda parecia não ter coração, não parecia que conhecia o sofrimento. Ele não sabia nada sobre os sentimentos das outras pessoas e, portanto, apenas batia nos homens no inferno. Ele estava no comando dos dois homens e sua tarefa era fazê-los sofrer o máximo possível.

 

Eu acho que o guarda também sofria muito. Parecia que ele não tinha amor nenhum no seu coração, parecia que não tinha coração. Quando se ouvia ou olhava para o guarda, não parecia possível entrar em contato com um ser humano por que ele era muito bruto. Ele não era sensível ao sofrimento ou a dor alheias. Esse é o motivo porque batia nos dois homens e os fazia sofrer muito. E o Buda era um desses homens em uma de suas vidas anteriores.

 

O guarda tinha um instrumento de ferro com três pontas e cada vez que queria que os dois homens fossem a frente ele o usava para empurrá-los pelas costas e é claro que o sangue corria ali. Ele não os permitia relaxar, estava sempre empurrando e empurrando. Ele mesmo parecia estar sendo empurrado por alguém atrás dele. Você já sentiu este tipo de empurrão nas costas? Mesmo que não tenha ninguém atrás de você, sente que está sendo empurrado e empurrado a fazer coisas que você não gosta de fazer, dizer coisas que não gosta de dizer e fazendo isso cria muito sofrimento para si mesmo e para as pessoas ao seu redor.

 

Talvez haja algo atrás de nós empurrando e empurrando. As vezes nós dizemos e fazemos coisas horríveis que não queríamos dizer ou fazer, como se estivéssemos sendo empurrados por algo atrás de nós. Portanto dissemos e fizemos mesmo sem querer. Isto era o que acontecia com o guarda no inferno: ele tentava empurrar por que estava sendo empurrado. Ele fez muito estrago aos dois homens. Eles estavam com muito frio, muita fome e o guarda estava sempre empurrando, batendo neles e causando muitos problemas.

 

Uma tarde o homem que era o Buda em uma vida anterior viu o guarda tratando seu companheiro tão brutalmente que algo nele surgiu. Ele queria protestar. Ele sabia que se interferisse, se dissesse alguma coisa, se tentasse evitar que o guarda batesse na outra pessoa, o guarda bateria nele. Mas algo o estava empurrando, portanto ele queria interferir, queria dizer: “Não bata nele muito. Porque você não permite que ele relaxe? Porque você tem que ferir, bater e empurrá-lo tanto?”

 

Profundamente dentro do Buda havia uma pressão aflorando e ele queria interferir, mesmo sabendo perfeitamente bem que se o fizesse, seria agredido pelo guarda. Aquele impulso era muito forte e ele não podia aguentar mais. Ele se virou e encarou o guarda sem coração e disse: “Porque você não deixa ele sozinho por um momento? Porque você continua batendo e empurrando desse jeito? Você não tem coração?”

 

Quando o guarda o viu protestando desse jeito, ficou muito zangado e usou seu garfo, enfiando-o no lado direito do peito do Buda. Como resultado o Buda morreu imediatamente e renasceu no mesmo minuto no corpo de um ser humano. Ele escapou do inferno e se tornou um ser humano vivendo na Terra apenas porque a compaixão nasceu nele forte o suficiente para ter coragem para interferir e ajudar um companheiro no inferno.

 

Quando eu li esta história, fiquei surpreso e cheguei a conclusão que mesmo no inferno há compaixão. Isto foi uma verdade confortante: mesmo no inferno há compaixão. Você pode imaginar? E onde quer que haja compaixão não pode ser tão mau. Você sabe uma coisa? O outro camarada viu o Buda morrer. Ele estava com raiva e pela primeira vez foi tocado pela compaixão: a outra pessoa deve ter algum amor, alguma compaixão para ter a coragem de interferir. Isto fez surgir a compaixão nele também. Por isso ele olhou o guarda e disse: “Meu amigo estava certo, você não tem coração. Você pode apenas criar sofrimento para si mesmo e para as outras pessoas. Eu não acho que você seja uma pessoa feliz. Você o matou”. E depois de dizer isto o guarda ficou com muita raiva dele também, usou seu garfo, enfiando-o no estômago do segundo homem que também morreu imediatamente e renasceu como ser humano na Terra. Ambos escaparam do inferno e tiveram uma chance de iniciar uma vida nova como seres humanos na Terra.

 

O que aconteceu ao guarda que não tinha coração? Ele se sentiu muito sozinho porque no inferno havia apenas três pessoas e agora duas estavam mortas. Ele começou a ver que esses dois não eram muito educados ou muito bons mas ter pessoas vivendo conosco é uma coisa maravilhosa. Agora as outras duas pessoas estavam mortas e ele estava sozinho. Não podia suportar aquele tipo de solidão e o inferno se tornou muito difícil. A partir daquele sofrimento ele aprendeu algo: aprendeu que não se pode viver sozinho. Os homens não são nossos inimigos. Você não pode odiar os homens, não pode matar os homens, não pode reduzir os homens a nada porque se você matá-los com quem você viverá? Fez um voto que se novamente tomasse conta do outras pessoas no inferno, aprenderia como lidar com elas de uma maneira melhor e a transformação aconteceu no seu coração.

 

Na verdade ele tinha um coração. Não estava certo acreditar que ele não tinha um coração – todo mundo tem um coração. Precisamos de algo ou alguma coisa para tocar esse coração, para transformá-lo num coração humano. Neste momento o sentimento de solidão, o desejo de estar com outros seres humanos nasceu nele. Por isso ele decidiu que se tivesse que guardar outras pessoas no inferno, saberia como lidar com elas com mais compaixão. Neste momento a porta do inferno se abriu e um bodhisattva apareceu com toda a radiância. Ele disse: “ Um deus nasceu em você e portanto não tem que permanecer no inferno mais tempo. Você morrerá rapidamente e renascerá como ser humano logo.”

 

Essa era a história que li quando tinha 7 anos. Eu tenho que confessar que naquele momento não entendi totalmente. Contudo a história teve grande impacto em mim. Acho que era meu conto Jataka preferido. Descobri que no inferno pode haver compaixão. É possível conceber a compaixão mesmo nas situações mais difíceis. Na nossa vida diária, de tempos em tempos, nós criamos o inferno para nós mesmos e para os nossos amados. O Buda fez isso muitas vezes antes de se tornar um Buda. Ele gerou sofrimento para ele e outras pessoas, incluindo sua mãe e seu pai. Por isso numa vida anterior ele teve que estar no inferno. Inferno é um local onde se pode aprender uma lição de forma a crescer e o Buda aprendeu bem lá. Você sabe o que aconteceu depois dele ter renascido como humano? Ele continuou a praticar a compaixão e deste dia em diante continuou a fazer progressos na direção da compreensão e amor e nunca voltou ao inferno novamente, exceto quando ele quis ir lá para ajudar as pessoas que sofrem.

 

Eu estive no inferno, muitos tipos de inferno e eu também constatei que mesmo no inferno a compaixão é possível. Com a prática da meditação budista, você pode evitar que o inferno se manifeste. E se o inferno se manifestar, você tem muitos modos de transformá-lo em algo que seja mais agradável. Quando você fica zangado, o inferno nasceu. A raiva faz você sofrer muito e não só você sofre, mas também as pessoas que você ama. Quando nós não sabemos como praticar, de tempos em tempos, criamos o inferno nas nossas famílias.

 

Na escola nossos professores nunca nos ajudaram a lidar com essas dificuldades. Eles não nos ensinaram como transformar o inferno em algo melhor como o paraíso. Mas quando você vem a um centro de prática como Plum Village, os irmãos e irmãs que vivem aqui serão capazes de dizer-lhe como evitar que o inferno se manifeste. Se o inferno surgir aqui, o que você pode fazer para transformá-lo numa atmosfera de calma, de tranqüilidade e de alegria?

 

Hoje eu gostaria que os jovens aprendessem mais sobre a prática de transformar o inferno em alguma coisa mais agradável. Vocês sabem que as práticas da respiração consciente, do andar consciente, do sorriso consciemnte são muito importantes. Você acha que pode andar – é claro que você pode andar. Você acha que você pode respirar – de fato, você respira todo dia, o dia todo e a noite toda. Você acha que pode sorrir. Sim, mas o sorriso aqui é um pouco diferente, a respiração é um pouco diferente, o andar é um pouco diferente. Nós chamamos isto de respiração consciente, andar consciente, sorriso consciente e se você se tornar mestre nesses métodos da prática, terá instrumentos para transformar o inferno no paraíso.

 

O inferno pode ser criado pelo pai ou mãe, irmão ou irmã ou por você mesmo. Você criou o inferno muitas vezes na sua família e cada vez que o inferno estiver presente, não só as outras pessoas sofrem, como você também. Portanto como fazer a compaixão brotar em cada um de vocês? Eu penso que está é a chave da prática. Se entre três ou quatro de vocês houver uma pessoa que tenha compaixão no coração, uma pessoa que seja capaz de sorrir conscientemente, de respirar conscientemente, de andar conscientemente, ela pode ser a salvadora de toda a família. Ela terá o papel do Buda no inferno por que a compaixão nasceu nele primeiro e esta compaixão será vista e tocada por outros. Pode ser que o inferno seja transformado em apenas um minuto ou menos. É maravilhoso!

 

Quando você está na escola aprende muito sobre escrever, ler e matemática e muitas outras coisas, mas não aprende sobre essas coisas. Eu acho que os monges e monjas, os irmãos e irmãs aqui em Plum Village, podem falar para você como praticar de forma a não deixar o inferno se manifestar e quando o inferno já estiver presente o que fazer para ele não continuar mas se transformar em algo maravilhoso. Alegria e felicidade são possíveis e se pudermos aprender um pouco sobre a prática da atenção plena seremos capazes de fazer a vida muito mais agradável para nossa família, escola e sociedade.

 

(Palestra de Dharma ministrada por Thich Nhat Hanh no dia 6 de agosto  de 1998 em Plum Village, França)

 

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