Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Transformando sua Consciência, Transformando seu Sofrimento

 

O ensinamento budista sobre o Começar De Novo é muito claro: "A inabilidade vem de nossa mente, e a inabilidade pode ser transformada por nossa mente. Se a transformação acontece em sua consciência, então a inabilidade desaparecerá como uma realidade no mundo manifestado. A mente é como um pintor." Este é o ensinamento de Buda, que a mente é como um pintor. O pintor pode pintar qualquer coisa, e ele pode apagar tudo. Assim se no passado vocês pintaram algo de que não gostam, e se estão determinados a não pintar isto novamente, então apaguem tudo. Isso depende de sua mente, sua consciência. Se há luz, há esclarecimento em sua consciência, há uma forte determinação, a consciência de que "Isto é algo negativo, é algo prejudicial, não é algo benéfico, e eu estou determinado a não permitir isto acontecer novamente," e então a mente é transformada.

 

Quando a mente é transformada, a liberação já estará lá para vocês e todos os seus antepassados, e se vocês ainda estão apegados àquele sentimento de culpa será porque vocês não fizeram o trabalho de Começar De Novo, e isto significa que vocês não praticaram a observação profunda de sua imaturidade, sua falta de habilidade. Se vocês o tivessem feito, então veriam que muitas condições surgiram para que aquela ação ou aquela sentença fosse possível. E agora, com seu esclarecimento, com sua determinação, vocês jamais permitirão que estas condições venham a juntar-se novamente para repetir a mesma coisa. Sua consciência, seu esclarecimento, é o elemento que prevenirá estas condições de se juntarem novamente.

 

Se sua prática do Começar De Novo não tiver êxito, será porque sua capacidade de olhar profundamente na realidade da situação não foi profunda o bastante, pois não houve nenhuma transformação dentro de sua consciência, ou dentro da consciência de seu companheiro, a outra pessoa. Não é porque o método não seja efetivo, mas porque vocês realmente não o praticaram. A prática do Começar De Novo é transformar sua mente profundamente, e para adquirir tal transformação, vocês precisam observar muito profundamente, na luz da integração do ser.

 

Eu sempre falo para meus estudantes que tudo o que vocês fazem, eu faço com vocês, então por favor tenham cuidado. Isso é verdade; e tudo o que eu faço, você fazem comigo. Se eu quebro os preceitos, se eu me comporto de um modo irresponsável, todos meus estudantes suportarão os frutos destes atos, isto é óbvio. Assim eu não posso agir de forma a fazê-los sofrer. Essa é uma energia muito forte que me mantém na prática correta, porque eu sei muito bem que se não estiver atento, se não estiver praticando corretamente, todos meus estudantes, meus discípulos, sofrerão.

 

A mesma coisa é verdade com meus discípulos: se eles não praticam atitudes conscientes, se eles não praticam os preceitos, se eles fazem sofrer uns aos outros, eu sofro; Eu terei que assumir tudo, porque nós estamos integrados. Nós não podemos estar separados. O professor não pode ser professor sem estudantes, e os estudantes não podem ser estudantes sem um professor. Assim se o Começar De Novo não trouxer o resultado desejado, é porque vocês não o fizeram a fundo. Vocês podem ter tentado fazê-lo falando de um modo ou de outro, mas não viram profundamente que vocês e as outras pessoas inter-existem. Se percebessem assim, o resultado viria imediatamente.

 

Quando eu estava na Itália, realizamos um retiro não longe de Roma e fomos para um campo de oliveiras. Eu notei que as oliveiras estavam crescendo em grupos de três ou quatro, e fiquei surpreendido. Mas descobri que tinha havido um ano muito frio e todas as oliveiras tinham morrido, por isso eles tinham cortado todas as árvores ao nível do solo e trouxeram mais terra, e no ano seguinte novas oliveiras surgiram. De uma oliveira, havia agora duas ou três ou quatro árvores de azeitona. E eu dei uma palestra de Dharma às crianças na Itália, e disse que vocês e seus irmãos e irmãs pensam que são três, mas de fato, se vocês tocam suas raízes profundamente verão que são um só. Assim ficar bravo com sua irmã ou seu irmão está errado; ao contrário, vocês têm que ajudar a ele ou a ela, porque ajudá-los é ajudar a si mesmo. Esta foi a maneira em que ensinei o "não-eu" às crianças, e elas entenderam imediatamente.

 

Havia uma pequena menina que não gostava do seu irmão, e como estava assistindo muita televisão, tinha a tendência de eliminar o que ela não gostava. E um dia ela disse, "Por que nós não eliminamos o irmão mais jovem?" Isto foi muito perigoso. Você não gosta de seu irmão mais novo, deseja que seu irmão mais novo desapareça, e imagina que pode fazer isto facilmente, como usar um controle remoto. Mas depois da palestra de Dharma que eu falei para ela, e os ensinamentos dados por alguns irmãos e irmãs que me acompanharam, a menina foi para casa e transformou-se. E um dia ela disse para seu irmão, "Irmão, eu estou aqui por você. Do que precisa? Eu farei para você." Assim sabedoria e esclarecimento são possíveis até mesmo com crianças muito jovens.

 

Se vocês tocam o solo do Ser profundamente, acharão a natureza da integração dos seres, e sentirão que é muito melhor ajudar a outra pessoa do que estar bravo com ela e puni-la, porque quando castigam vocês se castigam de alguma forma. Imagine um pai e filho que sempre tentam machucar um ao outro: ambos sofrem, e continuam sofrendo.

 

Durante a Guerra de Vietnam havia um soldado americano que se tornou muito bravo porque a maioria dos soldados de sua unidade foram mortos em uma emboscada por guerrilheiros vietnamitas; isso aconteceu em uma aldeia na zona rural, assim devido a sua ira ele queria vingança. Ele queria matar várias pessoas que pertenciam àquela aldeia. Assim pegou uma bolsa de sanduíches, misturou pólvora de explosivos neles e os deixou à entrada da aldeia. Ele viu as crianças saindo e levando os sanduíches alegremente pensando que alguém tinha deixado estes sanduíches deliciosos por ali, e comeram juntas, divertindo-se muito. E apenas meia hora depois ele viu-as começarem a mostrar sinais de dor. Seus pais, mães e irmãs vieram, e tentaram ajudar, lhes dando massagem e medicamentos, mas o soldado americano que tinha se escondido não muito longe de lá, sabia muito bem que não havia nenhum modo de salvar aquelas crianças, e que elas morreriam. Sabia que até mesmo se elas tivessem um carro para transportar as crianças para o hospital, seria muito tarde. Devido à raiva ele fez essas coisas. Se a raiva for muito forte em nós, seremos capazes de fazer qualquer coisa, até mesmo as coisas mais cruéis.

 

Quando ele regressou para a América, sofreu por causa disso: aquela cena lhe aparecia nos seus sonhos, e ele nunca pôde esquecer aquilo. A qualquer hora durante o dia, se ele se visse só em uma sala com crianças, não era capaz de ficar, e tinha que sair imediatamente do lugar. Ele não pôde falar sobre aquilo com ninguém exceto à sua mãe, que disse "Bem, era uma guerra e em uma guerra você não pode evitar que estas coisas aconteçam." Mas isso não o ajudou, até que ele foi a um retiro organizado na América do Norte.

 

Durante muitos dias ele não pôde falar para as pessoas a sua história. Era um retiro muito difícil. Nós nos sentamos em círculos de cinco ou seis pessoas, e convidávamos as pessoas a falar sobre o seus sofrimentos, mas haviam aqueles que se sentavam lá impossibilitados de abrir suas bocas. Havia veteranos de guerra que estavam profundamente feridos internamente, e o medo e desespero ainda estavam lá. Quando nós fizemos a meditação caminhando eu vi um ou dois andando muito para atrás, pelo menos vinte metros atrás de nós. Eu não entendi por que eles não se aproximavam, mas caminhavam tão longe assim. Quando alguém os inquiriu, descobriram que estes ex-soldados tinham medo de serem emboscados. Assim eles caminhavam muito atrás de forma que, se algo acontecesse, teriam bastante espaço para fugir. Um dos veteranos de guerra montou uma barraca na selva, e para aplacar seu medo montou armadilhas ao redor de sua barraca. Isto aconteceu no retiro da América do Norte… ele sempre tinha os guerrilheiros ao seu redor, e dentro dele, prontos para matá-lo a qualquer hora.

 

Finalmente aquele americano, veterano da Guerra do Vietnã, pôde nos falar de sua história sobre os explosivos postos nos sanduíches. Era muito bom para ele poder falar sobre isto, especialmente na frente de vietnamitas, seus inimigos anteriores. Eu lhe dei uma prescrição. Eu tive uma entrevista privada com ele, e disse: "Agora olhe, você matou cinco crianças. E isso não é uma coisa boa para fazer. Mas você não sabe que muitas crianças estão morrendo neste mesmo momento, em todos lugares, até mesmo na América, por causa de falta de medicamento, de comida?”

 

“Você sabe que 40.000 crianças morrem diariamente no mundo, só pela falta de medicamento e comida? E você está vivo, você está fisicamente sólido. Por que você não usa sua vida para ajudar as crianças que estão morrendo neste momento? Por que fica preso nas cinco crianças que morreram no passado? Há muitos caminhos. Se você quiser, eu lhe contarei como salvar cinco crianças hoje. Há crianças que precisam de apenas um pacote de medicamento para serem salvas, e você pode ser aquele que trará este pacote de medicamento para eles ou elas. Se você praticar diariamente desta maneira, as crianças que morreram por causa dos explosivos sorrirão em você, porque estas cinco crianças terão participado de seu trabalho de salvar muitas crianças que estão morrendo neste mesmo momento.”

 

Assim, a porta foi aberta, de forma que o homem não mais se viu apanhado pelo sentimento de culpa. Isso é o amrita, a néctar da compaixão, de sabedoria, oferecida pelo Buda: sempre há uma saída. De forma que aquele veterano de guerra praticou e pôde ajudar muitas outras crianças no mundo. Ele regressou ao Vietnam, fez o trabalho de reconciliação, e as cinco crianças que morreram começaram a sorrir dentro dele e se tornaram unas com ele. No princípio foi uma imagem infeliz, mas agora as cinco crianças ficaram vivas, se tornaram a energia que lhe ajuda a viver com compaixão, com compreensão. O lixo pode ser transformado em flores se nós sabemos como fazê-lo.

 

Se você é uma pessoa que foi abusada sexualmente quando criança, e se sofreu com isso, também pode praticar para curar sua ferida, de modo muito semelhante. O que você deve fazer está descrito muito claramente nos Cinco Treinamentos de Consciência: "Eu me comprometo a proteger a integridade e a segurança de famílias e casais. Eu me comprometo a fazer o meu melhor para proteger as crianças do abuso sexual." Isso é algo que vocês podem fazer. E se você faz o voto na frente do Sangha, do Buda, e do Dharma, de dedicar sua vida para proteger crianças que estão sendo ameaçadas agora neste mesmo momento, sua ferida de infância será curada. Você adquirirá muita alegria, e seu sofrimento será transformado em uma flor. Se você não tivesse sofrido daquela forma talvez não se tornasse um protetor de crianças, como você é hoje. Assim você olha seu sofrimento no passado e fica grato a isto, grato que aconteceu, pois assim você pôde se tornar um bodhisattva que protege as crianças.

 

Esta é a coisa maravilhosa sobre o Dharma: o Dharma sempre oferece uma saída, contanto que você saiba olhar profundamente a natureza de seu sofrimento. Não nenhuma necessidade de se apegar àquele sofrimento. Se ainda está apegado, significa que você não praticou a observação profunda, não permitiu que a energia de compaixão em você crescesse, para que assim você se torne um instrumento do Dharma, um instrumento do Buda.

 

Tudo vem da mente. Se a mente é transformada, tudo se transformará. Este é o ensinamento do Começar De Novo no Budismo. Na prática nós sempre regressamos para o Buda, o Dharma e a Sangha, não como noções mas como realidade. A Sangha é algo que você pode tocar, que pode viver diariamente. O Dharma também, o Dharma vivo. O Dharma vivo é algo que você pode produzir em todo passo que der, em toda respiração que fizer, em todo minuto de meditação, de trabalho. O Buda disse, "que se tome refúgio apenas no que é sólido". Existe uma ilha dentro de nós, e vocês devem regressar para esta ilha de consciência, nela tocando o Buda, o Dharma e a Sangha, e não deveriam confiar em coisas que são impermanentes, que podem se desmoronar a qualquer momento.

 

Se vocês têm uma convicção forte no Dharma, não há nenhuma razão para vocês terem medo de qualquer coisa. Para ter confiança no Dharma, vocês têm que ter êxito na prática. Há raiva, há ciúme, há confusão, e porque você oferece o Dharma como prática, tem uma chance de transformar estas aflições do passado, e devido a sua fé, sua confiança no Dharma aumenta muito. Isto é para seu benefício e o benefício de todos nós. (...)

 

Portanto, tomar refúgio no Dharma é muito importante. Você já não terá nenhum medo. Se tomar refúgio no Dharma, saberá que tudo o que lhe acontecer, poderá ser usado a seu favor para preservar sua paz, sua estabilidade. O Buda disse tome refúgio no Dharma e mais nada. Claro que, como um praticante você precisa de um professor, precisa de um irmão de Dharma, precisa de uma irmã de Dharma. Mas o que faz de um professor um professor é o Dharma. O que faz de um irmão de Dharma um irmão de Dharma, é o Dharma. Assim você confia na substância do Dharma, e não apenas na presença física daquela pessoa que chama de professor, ou irmão ou irmã. Se ele é seu irmão no Dharma, é porque tem o Dharma em si. Se ele é seu professor de Dharma, é porque o Dharma habita nele. Assim se você aprende como tomar refúgio no Dharma, então mesmo se não houver um professor , não houver um irmão de Dharma, você ainda estará sólido, não desmoronará, porque é no Dharma que tomamos refúgio, e não em qualquer outra coisa.

 

Suponha você teve a experiência de um ataque de pânico, ou uma depressão; se você adotou alguma prática para superar aquele ataque de pânico, aquela depressão, saberá que possui o Dharma em si. Da próxima vez que aquilo acontecer poderá sorrir disto, porque saberá lidar com esta tormenta. Assim confiar no Dharma, e não confiar em qualquer outra coisa, é a recomendação feita pelo Buda. Existem pessoas que perguntam como elas podem sobreviver sem uma casa, uma conta bancária, ou sem esta ou aquela pessoa, mas se você tem confiança dentro de si, onde quer que vá poderá criar condições de viver, de tal modo que poderá contribuir para o bem-estar do mundo.

 

Havia uma senhora que era uma refugiada entre pessoas de um barco que chegou à costa da Tailândia, e ela foi roubada de todo o ouro que tinha trazido. Devido ao fato dos piratas de mar terem levado tudo dela -- todos os seus pertences, o dinheiro, sua jóias -- ela só ficou com uma minúscula peça de ouro em sua boca. Ao chegar ela se perguntou, "Como eu posso sobreviver com apenas este pouco ouro?" Próximo a ela havia um cavalheiro que tinha sido roubado de tudo exceto suas bermudas - suas camisas foram levadas, suas calças, tudo -- e ele estava rindo e estava rindo. Ele disse, "Como posso sobreviver só com estas bermudas?" Ele estava muito contente porque tinha confiança em si. Estar vivo, isto era mais que suficiente para ele; ele não precisava de qualquer outra coisa. Assim nós deveríamos cultivar um tipo de não-medo: se nós praticamos o Dharma, e podemos contar com o Dharma, então não há nenhuma razão por que deveríamos ter medo de qualquer coisa se sabemos que a vida é impermanente. Nós podemos perder um ente querido no futuro, e o mundo inteiro será nosso refúgio.

 

(Ensinamentos do Mestre Thich Nhat Hanh -Retiro em Plum Village 10 de maio de 1998)

(Transcrito e editado por Carol Fegan, Chan An Cu  - Traduzido ao Português por Claudio Miklos)

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