Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Vacuidade: Vazio de quê?

 

Existem três tipos de concentrações presentes em todas as escolas de Budismo: Budismo do Norte, Budismo do Sul, todas as escolas - a prática das Três Portas da Libertação. As três concentrações ensinadas são: vazio, ausência de sinais e ausência de objetivo. Hoje vamos aprender como colocar em prática esses tipos de concentração, porque elas têm a capacidade de remover o medo e o desespero e nos ajudar a tocar o Supremo e deixar para trás nossas noções, como nascimento e morte, e assim por diante.

 

As três concentrações, chamadas Portas da Libertação, começam com o vazio. Vazio não significa inexistência, é uma coisa bem diferente. Esta manhã, antes da transmissão dos Cinco Treinamentos, cantamos o Sutra do Coração. O Bodhisattva Avalokiteshvara em meditação profunda descobriu que os cinco skandhas estão vazios. Ele estava olhando profundamente para sua própria pessoa, que é feita de forma (corpo), sentimentos, percepções, formações mentais e consciência, e os encontrou igualmente vazios. Mas estar vazio não significa ser inexistente.

 

É por isso que ele disse: “A forma é o vazio, mas o vazio é a forma”. O vazio não é nada. Suponha que olhemos para este copo. Parece vazio. Mas para que o copo fique vazio, ele deveria estar presente. Para estar cheio ou vazio, o copo deve estar ali. Portanto, vazio não significa inexistência.

 

Este copo está vazio de quê? Está vazio de chá, mas está cheio de ar. O vazio é "vazio de alguma coisa". Essa pergunta pode ser muito útil. Então, quando olhamos para esta flor, que é descrita como vazia, o que vemos nela? Vemos o sol lá dentro. Vemos uma nuvem dentro. Você não precisa ser poeta para ver uma nuvem flutuando na flor. Você sabe que sem nuvem não há chuva e nenhuma flor pode crescer. Então, está muito claro que esta flor não está vazia. Tem muitas coisas dentro. Está cheia de sol. Está cheia de nuvens.

 

Então você poderá ver o solo, a terra, os minerais, o jardineiro. Se você continuar, verá que todo o cosmos se uniu e ajudou a flor a se manifestar como uma maravilha. Então, na verdade, a flor está repleta do cosmos. Por que o Bodhisattva Avalokita disse que ela está vazia?

 

Então, deveríamos perguntar a ele: “Querido Bodhisattva Avalokita, você diz que esta flor está vazia. Quero saber, vazia de quê? Ela está cheia de tudo”. Então, ‘vazio’ significa: vazio de quê? Ou 'cheio' é: cheio de quê? Como 'consciência' é: consciência de algo. Então, o Bodhisattva lhe dirá: "Bem, você está certo. A flor está cheia do cosmos. A única coisa da qual ela está vazia é uma existência separada."

 

Uma flor não pode existir sozinha. Uma flor não tem uma existência separada, uma natureza própria. Auto-natureza, svabhava. Auto-existência. Tudo contém todo o cosmos, mas é vazio apenas de uma existência separada, de uma natureza própria. Porque se removermos os elementos não-florais da flor, não sobrará nenhuma flor.

 

'Flor', segundo os professores budistas, é uma designação convencional. É apenas um nome: uma designação convencional. Suponhamos que falemos sobre o euro ou o dólar. O dólar não tem natureza própria; é apenas uma designação convencional, não tem nenhuma natureza própria. Se tudo tiver uma natureza própria, se tudo tiver uma existência própria e não precisar da presença de outros, então tudo permanecerá igual para sempre.

 

Suponha que falemos sobre uma criança. Uma criança não tem natureza própria, nem existência independente. Sem o pai, a mãe, o sol, a água, a comida, uma criança não pode existir. Uma criança é uma designação convencional. É por isso que uma criança não pode permanecer criança para sempre, ela tem que se tornar um jovem ou um adulto. Se uma criança tiver natureza própria, ela permanecerá criança para sempre. Portanto, nada tem natureza própria, nada tem existência própria. Nada pode existir por si só. Não há natureza própria, é nisso que você toca quando olha profundamente para tudo.

 

Homem, o ser humano, é uma designação convencional. O ser humano não possui uma natureza própria. O homem é feito apenas de elementos não-homens. Olhando para um ser humano, vemos ancestrais. Temos ancestrais humanos, é claro, mas também temos ancestrais animais, e também temos ancestrais vegetais, e também temos ancestrais minerais. O homem é feito de elementos não-humanos. Se removermos todos esses elementos não humanos, animais, plantas, minerais, não sobrará nenhum homem. O homem não pode estar sozinho. O homem tem que interagir com animais, plantas e minerais.

 

É por isso que, para proteger o homem, é preciso proteger os animais, os vegetais e os minerais. Esse é o ensinamento do Sutra do Diamante. Esse é o texto mais antigo sobre ecologia profunda. O homem é feito apenas de elementos não-humanos. O homem não pode estar sozinho. O homem tem que interagir com animais, plantas e minerais. Para preservar o homem é preciso tentar preservar os animais, as plantas e os minerais. Esse é o ensinamento da ecologia profunda no Sutra do Diamante.

 

Quando você olha para o filho, você vê o pai, você vê a mãe, você vê os ancestrais. Um filho não pode existir sozinho. Um filho ou uma filha só pode interser com os pais, ancestrais e assim por diante. Isso não é difícil de ver. Como biólogo, você pode olhar para o corpo de uma pessoa e ver que essa pessoa é a continuação de seus pais. Todas as células, todos os genes foram transmitidos por muitas gerações de ancestrais. Se um filho fica com raiva do pai, há algo errado nisso.

 

Há jovens que estão com tanta raiva do pai, que se atrevem a declarar: “Essa pessoa? Não quero ter nada a ver com ele!” Isso é um absurdo. Como seu pai está em todas as células do seu corpo, você não pode remover seu pai de você. O fato é que você é a continuação do seu pai e você é seu pai. Você não pode tirá-lo de você. Você não tem existência privada e separada.

 

Esse eu, o eu (atma), não existe. Uma existência separada, alguma entidade permanente e imutável – às vezes chamamos isso de “alma” – não existe. Não há nada imutável. Quando você olha profundamente para os cinco skandhas – forma, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência – você vê que tudo está fluindo, tudo está mudando. Você não vê nada que possa permanecer igual em dois momentos consecutivos e, portanto, um eu, uma alma, que permanece sempre a mesma, não parece ser algo real. Não existe um eu imutável. Você está vazio de si mesmo. Você está vazio de uma existência separada.

 

A neurociência também pode ajudar. Quando olhamos para o cérebro, vemos muitos neurônios. Eles estão se ligando, estão mandando mensagens, estão trocando informações a cada momento. Não existe nenhum neurônio que desempenhe o papel de líder, o papel de presidente, o papel de comandante. É uma comunidade de células que funciona como uma orquestra sinfônica, mas não há maestro. Foi isso que a neurociência descobriu: não existe condutor. Há uma sinfonia.

 

Em nosso corpo existem bilhões de células que trabalham juntas. Não há célula que faça o papel de presidente, de patrão, daquele que dá ordens. Portanto, uma decisão é tomada, mas não há quem decida. Uma decisão é tomada, mas não há decisor fora da decisão. Há um sentimento acontecendo, mas não há aquele que sente. Existe uma percepção que acontece, mas não existe nenhum percebedor fora da percepção. Isto é muito interessante. Acredito que os praticantes de meditação e os cientistas podem sentar-se juntos, trabalhar juntos e descobrir juntos. Penso que a ciência moderna descobriu a verdade do não-eu.

 

Suponha que você fale sobre o vento e diga: “O vento sopra”. Parece que existe o vento que faz o trabalho de soprar. É muito engraçado dizer “o vento sopra”; se não está soprando, não é o vento. E dizemos “a chuva cai”. Imagine uma chuva que não cai? Se não cair, não é chuva. Então, você pode dizer que há chuva, mas não consegue encontrar um chovedor.

 

O mesmo se aplica aos nossos sentimentos, percepções, decisões: há uma decisão que é tomada, mas não existe um tomador de decisão fora da decisão. Há um sentimento de tristeza e de alegria, mas não há ninguém sentindo do lado de fora, no fundo. Porque não existe eu, não existe svabhava, não existe natureza própria; tudo é uma designação convencional. Tudo depende de tudo para se expressar, e esse é o ensinamento da interdependência, da interconexão.

 

Você não pode ficar sozinho. É impossível ser. É possível interser, mas não é possível ser. É por isso que o ensinamento do Buda sobre o Gênesis – como o mundo surge – é muito fácil, muito simples: “isto é, porque aquilo é. Isto não é, porque aquilo não é”. Tudo está conectado a todo o resto, e esse é o significado do vazio. Tudo está cheio de tudo o mais, mas nada tem uma existência separada. Isso é o vazio. O vazio não é algo negativo.

 

(Palestra de Darma do Mestre Zen Thich Nhat Hanh em 16 de agosto de 2013– transcrito do vídeo do YouTube

https://youtu.be/ddOaHjOAsjk)

Traduzido por Leonardo Dobbin)

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